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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Um destes dias, de manhã..."

João-Afonso Machado, 30.11.17

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Logo de manhãzinha, a rua apresentava-se completamente diferente. As folhas das árvores pareciam bandos multicoloridos de aves voando o céu inteiro. Havia poças de água nos passeios, nos buracos do alcatrão. Aliás: havia mais buracos no alcatrão, e as rodas dos automóveis faziam pschh e perdigotavam à passagem. Uma conhecida minha, um pouco adiante, tirou os óculos de sol – daqueles grandes, tipo coruja, - e encaixou-os no nariz com a naturalidade de uma praticante habitual de sky aquático. Todos olharam com desprezo um qualquer atleta em t-shirt e passada larga, pelo seu desplante de não ter frio. As gabardines e os blusões haviam fugido dos armários essa noite. A rapaziada ostentava os seus kispos com a galhardia dos hussardos. Enfim, chovera. E continuaria a chover

Imagine-se, por isso, a quase incontrolada alegria das gentes. Até o Pelhe, no pontão do Parque da Devesa, acastanhara, engordara, corria aos esses leito afora, ameaçando as margens, mesmo capaz de afogar alguma criancinha na sua torrente. De súbito ouviu-se a prolongada sirene dos bombeiros. Aquela que parecia avisar a aproximação dos bombardeiros sobre Londres. No entanto, ninguém perdeu a compostura, não houve pânico. Incêndio não podia ser, seria inundação. Mas onde? Em que benquisto lugar? E magotes de transeuntes tentaram com avidez saber onde ocorrera o fenómeno raríssimo e belo, a inundação. Iriam lá gozá-lo, filmá-lo com o telemóvel para o narrar, explicar aos filhos ou netos, demonstrar o inacreditável. E, até, enviar umas imagenzinhas para a televisão, com um nico de sorte, dois minutinhos de entrevista no programa matinal…

Conheci muitos, em outras marés, gente feita, adulta, que sendo do Interior nunca tinham visto o mar. Estamos agora no mesmo. Ainda nós, na nossa região temperada, vamos sendo contemplados com umas chuveiradas assim. Porém, quanto mais para sul pior. Morre gado à míngua de água para se dessedentar, tornam-se as terras estéreis, acumulados de poeira apenas, e o Governo (sem querer minimamente entrar em política…), mostrando-se felizmente insensível às nefastas influências que o cercam, cumpre à risca as leis do mercado – se a oferta é menor do que a procura, os preços aumentam: já constou, a água canalizada vai encarecer.

Antigamente era melhor. Dirão: são humores de velho. Pois serão, mas por esta altura já todos tínhamos apanhado umas constipações ou mesmo a gripe. Já faltáramos às aulas por isso, gozando o quentinho das brincadeiras em casa. Já suspirávamos pelo sol e pela primavera que, diz quem sabe, vai ser extinta. E os saldos também. Agora o clima não se compartimenta, a praia perdeu-se como miragem, há biquínis na relva dos parques. Andaremos de futuro de cataclismo para cataclismo. Vagas de ar tórrido e ventoso, tempestades de levantar as telhas todas, não tão usuais, mesmo só para quebrar a monotonia da seca. É a vida que temos pela frente… Por isso se propõem os governantes da nossa Província, antevendo uma imensa onde migratória de povos de gargantas ressequidas, capazes de beber o Pelhe todo, temerosos desse profundo desarranjo demográfico, seguir o exemplo do Presidente Trump. Afinal as nossas medidas são muito inferiores às da fronteira com o México, e um murozinho a separar-nos do além-Douro, qualquer parceria público-privada o constrói num instante.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 30.NOV.2017)

 

 

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