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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Atenas (II) - Anoitecendo...

João-Afonso Machado, 03.11.20

O sol tinha já fugido e a visita a Atenas não poderia ficar por ali. Nos picos circundantes, estranhas formas ainda se notavam, catalogações em aberto,

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deixadas para dias mais calmos, eu subjugado ao politeísmo (ou talvez ao panteísmo), o sacerdócio dos ortodoxos gregos, ora aqui, ora acolá, nas ruas, de crença firme à vista e bizarras vestimentas, mas não consentindo a fotografia... Nestas congeminações, a Platia Sintagma surgiu diante de mim como uma evidência de grandeza:

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Mormente o seu Hotel Grande Bretagne, onde de certeza me hospedarei numa próxima ida a Atenas e, muito perto, o Parlamento grego, o actual santuário da retórica, como são todos os parlamentos, mas este com a especial atracção dos Evzones:

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corpos (regimentos, batalhões) de infantaria ligeira sempre presentes nos cerimoniais de  honra em lugares de distinção. Uma pequena multidão assistia ao render da guarda, demoradíssimo, junto à escadaria da residência do vovô Sólon - simbolicamente falando, é claro, - numa geral estupefacção ante aquela fardamenta, que pede meças aos sargaceiros da Apúlia atamancados à mais provecta moda minhota, e o aprumo, o rigor e o orgulho da manobra.

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Não, - deixando de parte o gorro, o saiote, a meia branca justa à perna, sem dúvida aquelas espingardas disparavam, e seriam de utilidade superior às forquilhas das nossas revoltas populares. Um belo bocado de excentricidade, um momento inesquecível, entre o divertido e o patriótico.

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Escurecera tudo. Era sábado. Na Platia Sekeri, a gente nova aglomerava-se, conversava animadamente, muito afastada de todos os medos pandémicos. Jantei da boa comida grega, muito regada pela sua cerveja, e fui caminhando um pouco ao calhas, ainda atravessaria um apreciável naco da cidade até alcançar o hotel. Atenas arrebicava-se para a sua farra nocturna, passei a Platia Omonoia

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e prossegui apreciando estátuas, que as há em cada canto. Do clássico, como a Kolokotroni,

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ao vanguardismo do Memorial da Reconciliação Nacional:

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Porque já na Antiguidade, numa pulsão, aliás, transmitida aos romanos, os povos da Hélade assim acreditariam - e continuam a acreditar - na Eternidade: mediante a grandeza escultórica, já que as coisas pequeninas da alma guardaram-nas depois nos seus templos do catolicismo ortodoxo, em votivas tabuínhas pintadas e douradas.

 

Atenas (I) - Em volta da Acrópole

João-Afonso Machado, 30.10.20

Em boa verdade, a primeira experiência ateniense consistiu na perícia - ou no desvario - dos seus taxistas, numa correria louca até à outra banda da cidade. Urgia visitar o grande santuário, vamos exagerar: a Meca dos gregos.

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Não era absolutamente necessário ir lá acima. A Acrópole surge para a história no período micénico, em finais da Idade do Bronze. Foi crescendo, foi sendo destruída e reconstruída. Conheceu a tirania de Pisístrato, muralhara-na, vieram os persas e desvastaram a pobre coitada, Péricles recompensou-a, oferecendo-lhe o Parténon. Mas chegariam, entretanto, os turcos... e, já no "nosso" século XVII, os genoveses e a sua artilharia, a deitarem tudo ao chão outra vez.

Por isso, havia que não a incomodar, nem cair nas garras de qualquer maçador cicerone. Ficaram algumas fotografias, mais de pormenor, um nada bisbilhoteiras,

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e os deuses, e os seus amores com as sacerdotisas que os serviam, todos lá no seu cantinho. Abaixo celebrava-se uma animação verdadeira, mas ponderada, na Dionisiou Aeropagitou, com muitos turistas e muito cantorio: do nacional, deles, aos Beatles de todo o mundo.

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Uma avenida sorridente, muito educada, onde as pessoas param, ouvem a música, dançam mesmo ao som das suas preferidas. Captando a voz esplêndida de uma cantora-organista a entoar Nina Simone, não me contive de acenar, trautear qualquer coisa da melodia e ir indo, com adeuses de chapéu e algum gingar.

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Eram Zorbas por toda a parte e eu juraria, cruzei-me com o grande, o imenso, Anthony Quinn. Porém, mesmo em tais momentos de emoção, os gatos helénicos dormiam placidamente,

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a igreja de Santa Sofia, ortodoxa, também parecia repousar, observando os quatro cantos do mundo a convergir para o seu terreiro,

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e na trasversal Kariatidon, um pacato ateniense regressava a casa, decerto após mais um dia de trabalho. Santa convivência, a dos deuses e humanos, ali na capital da sabedoria mitológica. Por lá me demorei, magnetizado não sei por que força a prender-me nessa paz, nessa paisagem de gentes e cantares. Até que, descendo a rua e atravesssando a seguinte,

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ainda apanhei o Templo de Zeus, o deus dos deuses, o barbas temível do Olimpo, e o Arco de Adriano,

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o imperador romano que não prescindiu de ali deixar, para a posteridade, a sua marca pessoal. Era, arqueologicamente, o fim do passeio em Atenas. Repousante, como disse, numa mescla de rock e balalaicas, em que Afrodite, muito bem sucedida, acabara seduzindo o iracundo Poseídon...

 

Na Grécia, de comboio de Tessalónica a Atenas

João-Afonso Machado, 28.10.20

Meus caros conterrâneos, fui conhecer a distante Grécia, enquanto a pandemia ainda nos deixa circular no mundo. Uma viagem longínqua, cansativa, até ao extremo desse mitológico País. Estacionei a mochila em Tessalónica (a sua segunda cidade) e, rapidamente, acertei uma deslocação ferroviária, contornando os mares, até à capital Atenas.

Conviria ter presente, no mapa, os caprichosos recortes do território… que eu corri de norte a sul.

Como quer que seja, - fui. Cheguei a Atenas, mais de quatro horas no comboio, através de uma paisagem nada diferenciada, vale dizer, um fundo de montanhas despidas, nuas e secas, sem vivalma, como pano de fundo e, aos pés do viajante, uma estranha planície, por norma sáfara.

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Não que totalmente improdutiva. As máquinas agrícolas de grande porte davam nela em nuvens impenetráveis de poeira, e daí sairiam a ervilhaca, o milho, senão mesmo o algodão.

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Mas tudo – quão longe do nosso Minho ubérrimo! Além de alguns canais acastanhados de rega, ao longo de todo o percurso topei, apenas, um rio como nós os concebemos – largos e corredios de águas.

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E sempre fui congeminando de onde vinha a electricidade para aquelas depauperadas gentes, porque barragens, ali, - tão simples quanto no Sahara… Valer-lhes-á o baixo consumo de um povo que se amontoa, em mais da metade nacional, na histórica Atenas!

E o trem (dificuldade minha, chamar comboio a uma composição assim) prosseguia caminhos. Sem modernidades, apenas andamento. Nessa paisagem conformadamente igual, a planície, a ervilhaca, o milho, o hipotético algodão, ao longe o domínio dos deuses, os cumes carecas, o Olimpo, Zeus reinando entre os seus. Felizmente dormindo, sem disparar raios e coriscos… E o conta-quilómetros sempre a somar.

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De quando em vez, o trânsito por quaisquer urbes anunciadas em amachucados perímetros industriais e muita sucata. Nas estações ferroviárias, o amontoado de compridos atrelados de vagões de carga apodrecendo em ramais sem movimento. Mas que Grécia é esta? – perguntava-me – cheia de ferrugem e abandono, sem museus para tais antiguidades, sem vontade, assim desleixada…

E, no horizonte, o Olimpo (uma Serra da Estrela desarborizada mas levantada como uma árvore no meio do nada) e outros lugares montanhosos, privilégio de descanso dessa imensa genealogia de deuses helénicos. E, cá em baixo, a ervilhaca, o milho, quiçá o algodão dos seus veneradores.

Ora agora ou depois, o comboio parava em qualquer estação. Como em Larisa, cidade de algum peso; como em Tebas – a célebre polis de antes de Cristo, sábia, guerreira, - um quase tacanho apeadeiro. Estacado o comboio, lá ia sobrando o tempo para uma cigarrada fumada cá fora, na gare. Para umas fotografias também. À vista de maquinetas de reparações na ferrovia.

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Nesta Grécia sem parelha, perdida entre os muitos mares da sua história mediterrânica, ficou ainda a miríade de ilhas a que não cheguei. E sobre a estação final – Atenas?

Ora! Arredores à parte, a de V. N. de Famalicão mete-a num bolsinho. Mais não seja em traços arquitectónicos e limpeza do chão.

(Os gregos sabem o que passaram, e do que têm de se levantar. Vão lá cinco anos… Oxalá os portugueses não esqueçam, andaram muito perto de tal desgraça – de que se safaram graças a gente, à boa maneira da Antiguidade grega, agora ostracizada…)

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 28.OUT.2020)

 

 

Thessaloniki

João-Afonso Machado, 25.10.20

Fica-me na alma a imagem do meu filho, sentado à mesa comigo, lendo uma antologia bilingue (português e grego) de Pessoa e tentando, palavra a palavra, decifrar por comparação aqueles inconcebíveis grafismos de lá. Da terra dos gatos,

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onde jantávamos, em tasquinha chã, uma salada excelente e uns nacos de espadarte azul, e os bichanos sem dono vagueavam entre as nossas pernas, de mira na caridade de umas espinhas. Digo eu, isto dos felinos será parte grande do que resta da ocupação otomana  de Tessalónica. Eles miam de lá, ainda, e as gentes também não sabem esconder alguns flagrantes traços fisionómicos. A Ásia é logo adiante, o turco continua à espreita.

(Ao contrário do meu filho, não me demoravam preocupações linguísticas, nem mesmo arqueológicas. Somente... - nunca me aventurara tão longe no Mediterrâneo; e queria sentir todos os aromas do Egeu e regiões por ele banhadas.)

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Essa a primeira atracção de Tessalónica: o baía, o seu porto, o cais envolvente. As cores pesadas de um céu abafado, águas quietas, sucumbidas ao calor, navios de grande calado dormindo. Bem se compreende, o Pensador se vá deixando continuar a pensar, eventualmente espreitando de esguelha a versão feminina do Discóbulo, arrebitadamente concâva,

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esbelta e tão próxima quão distante. Também eu enchi o olho, até porque, como pano de fundo, na mesma direcção, se mantem a Torre Branca: o símbolo máximo da cidade; outrora "Torre de Sangue", mercê das muitas execuções nela levadas a cabo, agora albina, desde que um prisioneiro assim a resolveu pintar. É mais uma recordação das invasões turcas, esta datando dos finais do século XV.

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Não esqueçamos, estamos na segunda cidade grega da actualidade, no norte macedónico, vinda ao mundo na terceira centúria A.C. Mas com Alexandre o Grande sempre zelando por si.

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Porque o passeio não é eterno, importará assinalar a magnificência da Platia Aristotelius, ainda debruçada sobre a baía,

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e continuar a peregrinação para o interior, tropeçando, a cada passo, com ruínas gregas, romanas ou bizantinas. Sirva de exemplo o Arco de Galério, ou Kamara, evocativo da vitória militar sobre os persas,

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a Rotonda de Galério, que foi mausoléu imperial, igreja cristã e hoje é uma mesquita,

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e os restos mortais do imenso Palácio de Galério, muito ao correr da Platia Navarinou,

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onde vamos topar com um leão hercúleo, absolutamente pacífico e dotado de toda a liberdade de quem não é propriedade. Ainda se vive assim na Grécia, e não faltam esplanadas e gente de bem que dê um jeitinho de razoável peso, umas sobras pró jantar. O animal, aliás, prontamente vindo a mim quando o chamei, brincou, só quis festas, nunca perdendo a expressão com que a velha Helade sempre aceitou a Tragédia e o Destino.

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Tessalónica ardeu quase integralmente em 1917. Escapou a Ano Poli, a parte alta da cidade, por onde se chega através de muitas escadinhas e becos sem saída.

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Enfim, o castelo lá no topo, velha fortaleza bizantina, significa sobretudo o apaixonado e plangente encontro da juventude, em noites que pedem meças às conimbricenses junto à Sé.

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Porque estamos numa cidade universitária, consequentemente vivida por camadas etárias ainda frescas. Rapaziada que gosta de se divertir, oriunda dos quatro cantos do mundo, uma multidão, em suma. Com anos e anos pela frente, muitos mais do que esta terceira epístola sobre os tessalonicenses... Não escrita por S. Paulo, mas pela minha caneta.

 

Amsterdam, onze anos depois

João-Afonso Machado, 20.10.20

O paradoxo - detectamo-lo ainda o avião vai nas alturas: para não submergir em águas oceânicas, os holandeses deixaram-se infiltrar por elas. Na paisagem rural, é como se os talhões alternassem, ora sólidos, ora líquidos, em toda esse país de tulipas. Mas a cidade não destoa. Amsterdam são canais navegáveis e ruas para ciclistas.

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Onze anos depois voltei a apear na Centraal Station, de si mesma um monumento...

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... e a vislumbrar os gigantescos cabides-garagens de bicicletas, para qualquer incauto um modesto ferro-velho, não a não despesa de todos, e cada um dos cidadãos, um protesto antigo contra a poluição

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porque, realmente, importa inventar, e nisso a arquitectura holandesa parece ter perdido a cabeça e desenbestado em invenções múltiplas e avant-guard, conquanto dançando na perfeição a música dos tempos com a antiguidade.

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Sirvam de exemplo, logo de chofre, o Eye Filmmuseum e a Twenty A'dam Teren, na outra margem do Het Ij. Mas, nesse capítulo de cidade tão silenciosa - ouvem-se zunidos, são movimentos pedalados, veículos eléctricos, - um nada além descobrem-se outros hinos, de tantos destacando o Nemo Sciense Museum, verde das algas, inconfundível, entre os dias escuros de uma cidade assim distante dos dias latinos.

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Ou - sempre na bitola dos edifícios postos entre o classissismo - o Movenpick Hotel, a cair pingue nas águas da Oosterdock...

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Não obstante, Amsterdam guarda um lugar de eleição para os seus monumentos de outras eras. Os ditos clássicos, a maior parte deles de matriz religiosa, valem por si, quero dizer, os holandeses, não sendo já um povo de crenças profundas, nem de transcendências arreigadas, acendem-se votivamente ao Passado.

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Por isso as torres sineiras, de venerandas igrejas, permanecem lançando as suas sombras nos canais onde o turismo circula em barcos mudos, quase roçando outros, habitados e marginados de casario único.

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Um espanto! Uma maravilha, a descoberta de prédios, da mais perfeita geometria, pregados nas águas em absoluta verticalidade, gritando bem alto -  carecemos de sol, oferecemos alternativas: o conforto (vou adivinhando...), a imagem, o remanso...

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... e as melhores avenidas de comércio e lazer, como Damrack e um lote incomensurável delas. Amsterdam é proprietária de páginas e páginas de Humanidade medida por todos os ângulos das suas artérias. A História da cidade pertence sobretudo à da velha Europa e de todas as suas convulsões. Uma enciclopédia para prateleiras sem fim, repartidas pelos bocadinhos da imaginação de cada qual.

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Até dos sabedores da Fauna. Falar em gaivotas seria irrisório. Acrescentar galeirões, mergulhões, gaivinas... ainda assim de somenos. Entre a multidão, uma gralha cinzenta dando os seus iniciais voos é uma pista segura para demonstrar como, naquele mundo, tudo não pode ser imprevisivel.

 

Torre de Dona Chama

João-Afonso Machado, 01.10.20

Vamos em pleno planalto da Terra Quente, com a bússola a apontar o norte. Almas, muito poucas naquelas bandas; rebanhos, alguns... O destino é Torre de Dona Chama, um lugar quase perdido e esquecido. Hoje freguesia do concelho de Mirandela, em outros tempos que o Constitucionalismo levou cabeça de município orgulhoso, decerto mais populoso, firme na justiça de que o seu pelourinho era o ceptro.

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E, ao lado dele, a velha Berroa. Uma "porca de Murça" menos abonada, digo eu, em solos de fertilidade inferior; uma ursa, dizem outros. Não sei: seguramente um quadrúpede e mais uma achega para a colecção de lendas que vicejam na região. Dona Chama, Dona Chamoa, terá sido a senhora terratenente, ali com autoridade antes mesmo de Portugal nascer...

E Torre de Dona Chama parece dormir o sono da Branca de Neve. É domingo, não se vê vivalma.

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O centro da vila (uma cortesia governamental de 1989) reparte-se entre as utilidades (sendo evidente o monopolismo comercial em Torre de Dona Chama...) e o abandono, paredes meias, - um abandono que se dá ao luxo de deixar apodrecer uma vidraria-drogaria-etc engalanada à entrada por lindíssima parreira, monumento ímpar,

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e, por fim, alguém, um ancião, comprovando que ainda estamos todos vivos. Apenas o casario não.

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Porque a debandada é tão real quanto cruel. Torre de D. Chama soma hoje pouco mais de mil habitantes. Claro - os efeitos de tal escassez ecoam nos arruamentos sem voz

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exceptuando as das galinhas da vila, acomodadas nos rés-o-chão das residencias, aparentemente melómanas, ou então percursoras de revolucionárias formas decorativas.

Ir a Torre de Dona Chama não é regressar ao Passado. Antes será avançar no mais sinistro Futuro. Depois de um Presente onde paredes seiscentistas se conspurcam com persianas nas suas janelinhas encaixilhadas

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e a frontaria da antiga casa enobrece a sua ruína com um brasão sabe-se lá de quem, possivelmente de alguma guerreada partilha, ou de um mundo já há muitos anos citadino e desmemoriado.

 

De comboio, da Régua ao Pocinho

João-Afonso Machado, 14.09.20

Um passeio absolutamente ao alcance, e tantos anos de desprezo... A Régua, em Setembro, no auge do cosmopolitismo, a pedir meças às cidades maiores. Uma vida cara, lá para as bandas, e um impressionante vaivém de gentes. A estação ferroviária, de súbito cheia de idiomas díspares, impaciente porque o comboio, bem à portuguesa, vinha atrasado. Íamos subir o Douro até onde pudesse ser.

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Não tardou a primeira barragem. Bagaúste. O rio hoje é isto: ora um lago, ora um fio de água onde por milagre os barcos-hoteis vão furando sem naufragar. E nós sempre pela margem, de olho esbugalhado ante paisagens imensas, para já povoadas, o mundo das quintas vinhateiras.

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São montes que se despenham das alturas, em socalcos agora trabalhados por máquinas, já sem os muretes de pedra e as escadinhas, vinhas modernas, decerto mais rentáveis.

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Adiante, não muito, o Pinhão. O coração do Douro, se a Régua é a sua capital administrativa. A vida dos povos da Região contada toda nos mais ilustrados e hábeis azulejos da estação. O comboio enche - assustadoramente - de passageiros. Está ali o mundo inteiro e, cada vez menos, a minha mobilidade para fotografar, conquanto a automotora se desloque com todas as janelas abertas. À moda antiga...

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A próxima assinalável paragem é no Tua. Vale dizer, junto à confluência deste rio com o Douro. Nova - e mui caudalosa - invasão de utentes... Pelo meio, antigas peças da ferrovia, um misto de exposição e apodrecimento, mas porquê?, não me ocorrem outras linhas em que tanto seja este descarado desperdício.

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Depois o Douro parece emagrecer apertado entre paredes de granito. Por tempo bastante - as vinhas somem-se, e levanta a voz um panorama calado de pedra, carrasqueiras e codeçais e estevas.

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Lugares de Adamastores fluviais onde duvido alguém tenha chegado. Ou sobrevivido... Mortes vindas do céu para as águas, ignotas e esquecidas.

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(Ladeando o drama, a automotora prossegue a sua marcha. Velozmente. E nós no mesmo ritmo, porque o Alto Douro não cabe todo aqui...)

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Mas há o tornar ao vinho. Já em terras de muito poucos conhecedores. Passamos a célebre quinta do Vesúvio da celebérrima Ferreirinha (D. Antónia Ferreira). Para trás ficaram os tremendos cachões e o fantasma de Forrester. Neste Douro mais selvagem, mandam muito, actualmente, - os britânicos do Oporto Wine.

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Afora eles, estranhos gostos se penduram nas margens ingratas do rio. Perco-me a pensar como e de quê - ou quanto... - se aguentarão naqueles galhos de vida.

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Enfim, o Pocinho. Daí para a frente, é o nada ferroviário, salvo a saudade de comboios da minha juventude, ainda a vapor, a linha do Sabor, os machos que montávamos e vinham carreiro abaixo, só por milagre não se - e nos - esborrachando debaixo das locomotivas. É Fozcoa e a proximidade de Espanha. Não é - um boteco sequer para nos dessedentarmos em dias assim, abafados, tragados pelas serranias, a pedir encarecidamente cerveja fresca, uma fatia de qualquer coisa, bons anfitreões... Uma lacuna triste no Douro Vinhateiro - Património da Humanidade!...

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Já no regresso, entardecia mais depressa que o andar do comboio. O cansaço instalara-se nas carruagens. Mas houve sempre um lugar no pódio para a Quinta das Carvalhas, no Pinhão, a cabeça da Real Companhia Velha.

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Conhecia-a, há mais de três décadas, no meu baptismo às perdizes no Douro. Trazido e recebido por gente para sempre no meu coração!

 

Grândola

João-Afonso Machado, 01.09.20

Há uma avenida quase sem princípio nem fim. Afinal, como se não estivessemos no Alentejo... Pensando melhor, um eterno bater de botas no asfalto, rude e militar, determinado: ouvem-se sons - Grândola Vila morena/Terra da fraternidade/O povo é quem mais ordena/ Dentro de ti ó cidade...

E esse ritmo assustador, a revolução em marcha, prossegue avenida fora. Será de temer o pior, andamos nos ecos da tomada da Bastilha, a "fraternidade" é um alçapão...

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A apresentação do filme aterroriza. A pelicula tranquiliza. O bater das botas esboroa-se. Grândola, afinal, é uma terra de bem receber os forasteiros. Em cada esquina um amigo... A começar pela terceira idade.

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A sombra, uma nesga de ar corrido. Uma tarde conversada. Para o Inverno, essa macaca, a Revolução! Até lá, amplas liberdades de cumprimentos a quem chega, muita simpatia dos indígenas. E a curiosidade, que é o chouriço dos anfitreões de pão aberto à espera.

Grândola transborda de gente receptiva!

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Entretém-se nos seus clubes, nos seus bailaricos. Lugares sagrados de conspirações de outrora. Santuários, digamos assim. É o mal de Grândola - impossível dissociá-la da política. E das cores garridas dessa política!

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Em algum desacerto com as coisas do Senhor, há Cultura. Há de haver muito mais, sem dúvida. No vazio das ruas vamos descobrindo actualidades, Grândola tem o ouvido apertado ao transistor, escuta o relato, é sua a primeira página desportiva

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e as notícias chegam frescas, aí temos a equipa sportinguista para a próxima época, além do óleo emérito de Varandas e de lances capitais futebolados do futuro. Grândola sonhadora, à sombra de uma azinheira/que já não sabia a idade

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Afinal, Grândola é a despedida. Para norte e para o sul. Para o almejado Algarve de uma simpática inglesa. Para Lisboa, destino dos que regressam de férias. A estação ferroviária sem vivalma, apenas uma voz monocórdica no altifalante, anunciando os próximos comboios.... Grândola? - dada agora a fantasmagorias???

 

De Chaves a Faro (EN2) - VII

João-Afonso Machado, 03.07.20

Paragem em Mora para o almoço, com uma rápida ronda pela vila. Era feriado. Lá para o centro, um restaurante aberto, uma fila imensa à porta. Tudo o que desapetecia. Era o Afonso, um nome magnífico, cheio de realeza, e uma estrela Michelin na porta. Entreolhámo-nos, eu e a minha gentil "pendura", havia que dosear custos. Num breve inquérito, detectámos o estabelecimento do Sr. Hélder Granhão, mais abaixo, comida para o nosso bolso. E assim foi, numa esplanada, as pernas da frente das cadeiras no passeio, as de trás já na rua, a gozar a inclinação refastelados, mais um belo bacalhau à Brás. De vinho, uma caneca cheia de zurrapa branca da casa. Em tempo de guerra, não se limpam as espingardas...

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Fez até a sua aparição um velho portuguese pointer, um sobrevivente da crise Lehman Brothers, caçador de outros tempos, impávido ante a situação geral do País. Fosse na sua juventude, ia tudo corrido à dentada. E ali nos fizemos amigos e o abracei e fui correspondido. Com a sua bênção voltámos à estrada.

Corremos rectas como elas são - infinitas. Disso tomámos notas nas Alcáçovas.

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O calor arrasava. Determináramos ainda uma paragem em Aljustrel. As vilas alentejanas assumem, por vezes, a fisionomia de um vício.

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E de lá vim com imagens de moínhos de vento dos idos dos burricos enfarinhados, memórias da minha querida Mãe, museus, tumbas ao léu, máquinas ainda produtivas, sabe-se lá!... O alcatrão tomara conta de nós e Almodôvar era uma fixação.

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Entre andorinhas ainda a tirar o brevet e uma sede de concelho passada à espada, quero dizer, dizimada por vistas curtas, ensonadas, ficaram lugares do melhor manuelino. Pouco mais.

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Salvaguardando, é claro, os meus velhos amigos pintassilgos. Finalmente, a cama, o dormir, o nada.

O dia seguinte seria o último. E envolvia a travessia da serra do Caldeirão, um deserto ondulado, com pêlos de sobreiro e outros de rapar a direito, sem lavores de pedo-manicure. No caminho, uma surpresa em Vale de Maria Dias (estes nomes, estas paragens...).

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O antigo edifício da Junta Autónoma das Estradas e a sinalização das distâncias que faltavam percorrer. S. Brás de Alportel era já ali... Muito aliviado pelos seus jacarandás. E muito construído, muito à pressa, como se fosse já correndo para mergulhar nas ondas do mar... Estávamos no Algarve!

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O foguete acelerara ao máximo. Faro, por fim!!! E depois das tradicionais rotundas o marco que, verdadeiramente, assinalava a chegada. Era o mítico km 738.

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Tinha praça condigna, em seu redor. Tiradas as fotografias da praxe, fomos a umas sardinhas apaziguantes. Faltava outra tanta viagem - agora de sul para norte...

 

De Chaves a Faro (EN2) - VI

João-Afonso Machado, 01.07.20

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Já de Castelo de Vide, ao longe, no cimo da serra, se avista Marvão, a "Sintra" do Alentejo. Seria obrigatória uma visita demorada, depois de passada a muralha, de lupa atenta a miríades de pormenores e grandiosidades de primeira água. Mas o cansaço era enorme e reduzida foi a volta, sem mesmo sairmos do carro. Haverá outros dias para fazer, um a um, tantos becos, tantos largos, tanta história. Anoitecera já, quando chegámos ao vizinho lugar da pernoita, a Escusa. O frio incutia respeito.

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E, de manhã, o passeio de reconhecimento por mais uma pacata aldeia alentejana, este muito de gaiolas de canários. Terra de santo sossego e um lindíssimo fontenário, mas desprovida de cafés abertos. Sem, sequer, um copo de leite cá dentro, demandámos outras paragens.

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Percorremos o túnel arbóreo da Portagem, retrato vivo das estradas de antigamente. O próximo destino - sempre de fugida - seria Portalegre, capital de distrito e cidade monumental.

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O castelo... A Sé... Mais a promessa de retorno de dois viajantes que já iam demasiadamente embalados... - para o fim da viagem.

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Mas agora era ainda apenas o fim do desvio à EN2. Chegara a hora do almoço, e a fome sobrepunha-se à vontade de vasculhar as belezas de Portalegre.

Assim - novamente na estrada.