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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

This is the end, my friends

João-Afonso Machado, 31.12.20

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Faleceu. Nas derradeiras horas de 2020, depois de uma vida inteira de escrita, faleceu MACHADO, JA, no conforto do seu computador, o qual - é de realçar - há longos meses o vinha apoiando sem lhe massacrar o espírito, um bocadinho que fosse.

As suas muitas canetas e esferográficas, todas contempladas no testamento, tém já competências e responsabilidades atribuídas, e assim livres do abandono, prometem o melhor desempenho e a continuidade do seu múnus.

Só o velho Borgward se revelou incapaz de acompanhar os tempos. Sucumbiu também, como símbolo emérito de uma época que jamais passará, esses sonhados idos em que as pessoas eram de carne e osso, e não manipuladores manipulados da tecnologia.

Cerimónias fúnebres, MACHADO, JA resumiu-as todas quando, antes de exalar o último suspiro, parafraseando o grande, mas incompreendido, Jim Morrison - «This is the end, my only friend, the end». E essa célebre ode à finitude foi ouvida completamente, com excepção de um pequeno trecho, menos simpático. Ainda houve quem criticasse MACHADO, JA pelas suas propensões censórias. Engano: ser politicamente incorrecto é isso - o contrário das finesses de barbeiro do pensamento actual.

Que descanse em paz. E o Borgward (Isabelle) também.

 

O adeus à minha personagem

João-Afonso Machado, 26.12.20

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Enfim, acedi em contar ao Zé Aniceto o que se passara, mas sob a condição de ele me emprestar o Mercedes. E expliquei porquê:

Ali na praia andámos muito em trivialidades, esquecido que foi o demoníaco Governador Civil. - Estas águas - dizia-lhe - são das mais famosas, em todo o Atlântico, na pesca do espadarte; têm até um record, o de o mesmo pescador ter capturado dois exemplares no mesmo dia...

(Eu continuava a assinar a revista Diana, tal como o meu Pai, assim mantendo a colecção inteira, e satisfatoriamente actualizados os meus conhecimentos sobre caça, pesca e hipismo.)

Mas a façanha dos espadartes não constituía novidade para a Elizabeth. A sua atenção ia mais para os búzios que a maré depositava no areal. E arrefecia, o sol precipitava-se no poente... Vai que ela decide bater em retirada?

Foi então, com o denodo do velho antepassado destruidor à machadada da porta da muralha de Santarém, lancei, num ímpeto, como quem ordena "à carga!", o mais temerário convite a que alguma vez me atrevera - Elizabeth, não tarda são horas de ir... Posso convidá-la para jantar? - Why not? - ouvi dela.

(Uai quê?... Mas sua pela expressão, ou troçava de mim ou a ideia agradava-lhe. Creio a ter encarado com um olhar pouco Machado escalabitano, quase suplicante.)

- Vamos, porque não? Contar-lhe-ei o que conheço do Norte. E que tal Sesimbra?

E pronto. Nesta altura do relato já o Zé Aniceto me dava palmadinhas nas costas e passava as chaves do Mercedes para as minhas mãos.

Correu tudo bem, conquanto o Mercedes não causasse qualquer sensação. Havia de ser um Jaguar, ocorreu-me.... Até porque com o carocha, ou remediado ou germanófilo, e ambas as hipóteses não interessavam.

Fomos a uma marisqueira, por sugestão da Elizabeth logo aceite. Uma chatice, uma encravadela: nunca aprendi a descascar camarões e detesto as mãos todas besuntadas, o cheiro, as unhas entranhadas de casquinhas. Mandei vir uma garrafa de branco fresquinha, que a Elizabeth recebeu com um ar gulosíssimo. Torneei o imbróglio dos camarões com uma sapateira. Uma segunda garrafa veio para a mesa. E, perdido por cem, perdido por mil, - apontei o dedo a um robalo maior do que um tubarão, a cabeça e o rabo a fugirem pela travessa fora. Felizmente, era consensual, o ano agrícola será excelente...

Conversámos abundantemente. Contou tinha origens no Minho, também. A Família, aliás, por lá vivera quando o malandro do Salazar entrou a cismar com barragens. A Venda Nova, Salamonde, a Caniçada... em todas houve o douto conselho de um seu parente qualquer, um engenheiro.

Os britânicos são assim. Facilitam no que não é deles. Têm o Loch Ness, não querem saber de diferenças entre o natural e o artificial, daquelas massas disformes de betão entupindo os rios e as montanhas. Com as nossas aldeias a desaparecerem submersas e a Nessie deles jamais emergindo e aparecendo.

Mas o clima do Sul estimulava-a muito mais. Na sua previsão, os seus compatriotas desembarcavam já em Portugal pelo Algarve... - Barragens no Algarve? - Não, que disparate! Sol, mar, turismo, esse é o futuro algarvio...

Tínhamos, portanto, usurpação. Logo pensei em reunir um Batalhão de Voluntários Realistas, de resto, nada de inédito na minha Família, para combater o inimigo.

Mas depois imaginei o Nel e outros milicianos de bacamarte apontado a tropas assim preparadas como a Elizabeth... E eu próprio, - o capitão - de sabre ancestral torcido como uma folha de lata, o revólver esquecido entre os dedos, num grave risco de me aleijar. E calei-me. Deixei os casacas-vermelhas sairem dos botes, e que os seus hoteis desgraçassem a nobre raça lusitana, como outrora as termas romanas a latinizaram. Só não bebi o whisky final, troquei-o por uma bagaceira nossa.

À despedida, um shake-hands. Mas a Elizabeth veio toda sorrateira e deu-me um beijo na cara. (O Reino Unido é, realmente, uma potência nuclear!) E, sempre meiga, prometeu - Quando voltar a passar a sua vilória, vou procurá-lo. Onde o acharei? - Olhe, o melhor é perguntar lá pelo Machado: o Machado patrão da Salette, para que não haja confusões... 

 

A falta que me faz, o velho Figueira

João-Afonso Machado, 22.12.20

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Vinha já do tempo dos almocreves, o velho Figueira. Homem feito, conheceu o correio postal, os pioneiros sêlos com a efígie da Senhora Dona Maria II, a nossa Rainha, e foi no tempo daqueloutros, escalados dos cinco centavos aos cinquenta mil reis, cada degrau da sua cor, com o cavalo a galope e o cavaleiro agarrado à corneta, foi nesse tempo já remoto, dizia eu, que o velho Figueira exerceu em pleno a sua actividade de carteiro

(E nunca ele me soube explicar para que servia, então, um sêlo de cinquenta paus. Se não fosse para coleccionadores, havia de ser para despachar contentores vindos do outro lado do mundo.)

Sucede, Salazar, sempre em intrigas, desconfiando de tudo e de todos, deu em implicar com o velho Figueira: despediu-o, pô-lo a vender lotarias para sobreviver. Foi quando lhe deitei a mão, era homem de palavra e sério, sempre sério, no serviço. Da maior eficácia. E passou a ser o meu correio - Ó Figueira, ponha-se lá na mula e leve esta encomenda a tal parte... Quanto é? - E, contas ajustadas, por muitos pinheiros que a tempestade deitasse ao chão, por mais lobos que lhe saíssem ao caminho, o velho Figueira desincumbir-se-ia  certinho da sua missão.

Sempre de fato cinzento e cigarro chupado a afogar-se no canto espumoso da sua boca. A voz roufenha, a goela ávida de uma malga de carrascão. Mas hirto, a prumo, em cima da montada, e muito educado. Assim topasse alguma hesitação no destinatário, logo balanceava a peroração - Vossa Senhoria, solicitou (palavra muito do seu agrado)... - exactamente, como eu explicava, Vossa Senhoria tem perante si o pretendido. E Vossa Senhoria compreende, eu tenho aqui o registo do solicitado, e uma vez registado...

E era que nem ginjas! A encomenda ficava na morada para onde devia ir. Ao dia seguinte, fazíamos contas...

O velho Figueira, o meu distribuidor, como lhe chamava, era um génio comercial. Mas ninguém inventou ainda um remédio contra a cavalgada do tempo. E ele é muito mais rápido do que as alimárias dos almocreves ou mesmo a do velho Figueira. E assim este meu fiel foi transitando para velhíssimo.

Chegou a centenário, quase bicentenário, tinha já inscrição no Antigo Testamento. Mas o Destino cumpriu-se, fatidicamente.

Ficou nas minhas mãos um trabalhito para ele acabar. Pois terei de ser eu, agora. Mesmo porque, embora sem a fibra do velho Figueira, nada me apetece ser incomodado pelo fantasma de Salazar, ou por essa horda que não nos poupa nos tributos, os seus descendentes.

 

O previsivel fim

João-Afonso Machado, 20.12.20

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Já há muito era previsivel: a velhice de MACHADO, JA anunciava o seu estado terminal. Sempre foram mais de dez anos a rabiscar, obrigado a duas ou três plásticas, sempre por um caminho novo dentro do classicismo, as longas barbas brancas de MACHADO, JA riam, mesmo a mostrarem os dentes, pelas inovações gráficas ou gramaticais que, por si só, tentassem a originalidade aconselhada. Confidencionalizou-me MACHADO, JA, lera quase todo o Saramago e compreendera finalmente a política. Não, seria ele próprio até ao fim.

Seja como for, os clínicos recomendaram à família estivesse preparada. MACHADO, JA soube disso e escarneceu. Continua publicando à toa. Só mais tremelicando da mão... E sabendo de um propósito de homenagem, mandou toda a gente à merda, que se livrassem, seria uma onda-nazaré de gaffes sobre gaffes.

(Nestas fúrias de tantos em seu redor, a chateá-lo, vagas de enfermeiros acorrem de botija de óxigénio em punho. MACHADO, JA diz-se então são e salvo na praia. Enfim, nos Cuidados Intensivos grassa o alarme...) 

Conforme-se Portugal... Esta grande figura nacional está no último trecho de viagem antes da negritude do sem-tempo. Mas que não haja veleidades: nem ele nem Eça querem o Panteão Nacional - jamais a regicida companhia de Aquilino. MACHADO, JA, no seu leito de quase finado, apenas se interroga, angustia-se apenas por saber - quem depois dele interpretará Portugal sem abalar o status quo? Haverá reencarnação? E, por isso, pede a pena e o tinteiro, e escreve, escreve, escreve..

Em boa verdade, porque, tudo lido, só ele, e um ou outro, proclamam "Nós" em voz sonante, que o mesmo é dizer - Viva El-Rei!

 

Aí está ele! - "Contos da Saudade"

João-Afonso Machado, 16.12.20

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A entrega acabou de chegar. Foi o tempo de fazer uma fotografia tosca e começar a divulgar.

Procederemos da seguinte maneira: os meus amigos do FB já sabem como é - mensagem fechada, morada para envio...

Quem tiver o meu tlm está também à vontade.

Os restantes - contactem-me para este endereço electrónico: machado.ja@sapo.pt e tudo se arranja da mesma maneira. Ele fica exclusivamente ao serviço desta nobre missão.

Quanto a entregas - ou em mão (por falar nisso, sigo amanhã, ao fim da tarde, para Lisboa...), ou por correio, à cobrança, com portes incluidos.

No mais importante... falamos em privado, está bem?

Obrigado!

 

Muito bem impressionado com a minha personagem

João-Afonso Machado, 16.12.20

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Hei, pois, que descrevê-la, a minha personagem. queimadinha do sol, sim, mas com regras. E de um bonito loiro, muito natural. Os olhos azuis mais do que o céu, e eu logo percebi - não seria a D. Filipa de Lencastre, porém era evidente o sangue vindo do outro lado da Mancha. Aliás, a D. Filipa de Lencastre não se movimentaria com aquela descontracção, assim numa camisa emprestada pelo irmão sobre um maillot diminuto, muito poupadinho.

- Isto só cá para o sul - pensei - em Vila do Conde levavas uma rabecada a sério do Baltasar-banheiro, e o Baltasar-banheiro a mais calorosa ovação das senhoras idosas todas, entretidas no seu crochet à sombra da barraca maior.

Mas também ela me encarava, denotando uma certa curiosidade. E eu não segurei os cavalos. - Iria jurar, vi V. Ex.cia no norte, aqui atrasado, à noite, vestida como a noite, num automóvel mais quieto do que a noite...

(Menti descaradamente, é claro, orientado pelos relatos do Nel.)

- Realmente! Tive um azar mecânico, foi já o ano passado, numa viloriazinha minuscula a caminho de Braga. É de lá? Coincidência! Mas faça o favor, esqueça o «V. Ex.cia», o meu nome é Elizabeth...

(Eu não dizia? Elizabeth! Britânica, com o nome da Rainha, felizmente uma estampa, todavia, coitada da Princesa Ana, andarão as duas pela mesma idade.)

- João Afonso, um seu criado, - redargui, muito cioso do meu nome próprio, e não querendo ficar para trás na contagem das sílabas.

Assim do nada se foi parolando. A Elizabeth elogiou muito o meu chapéu, de palha da feira de Barcelos, como os dos rapazitos que vão para o campo olhar pelo gado. Ventava, entre aquelas arribas, mas o elásticozinho no queixo não o deixava levantar voo. Eu deslumbrei-me com o seu atilho de cabedal ao pescoço e, nele, uma pequena estrela-do-mar seca, amarelada. Absolutamente beatnik! Rapariga solta, aventureira, de apetite. Deixando vir de si toda a maresia, um corpo belo como a natureza inteira, suave, de formas escultóricas e descontraídas, esmagando com a sua simplicidade estas senhorecas tão frequentes de lenço e laca no cabelo. E areia na cara, agarrada aos batons e aos cremes. A Elizabeth podia ser Jane e eu o Tarzan, se Edgar Rice Burroughs nos casasse.

Então, e era daqui de baixo, vivia cá? Que sim, a família radicara-se há muito na Capital. - Mas fui apanhá-la quase em de Braga - continuei a mentir-lhe. Pois, fora convidada para uma recepção oferecida pelo Governador Civil, um amigo dos seus.

Calei um palavrão imperdoável porque esse fundibulário, o Governador Civil, é um republicano empedernido que, por graçola tosca, diz sempre celebrar o Natal a 5 de Outubro. Enfim, consegui suster-me e, sem darmos por isso, sentámo-nos os dois numa rocha em conversa amena. Do que falámos é o que eu ando agora a tentar lembrar, como acordado de um sonho, porque o Zé Aniceto, nas costas da prima Zizi, bombardeia-me com perguntas sobre a «inglesa», o grande malandro!

 

Só para lembrar

João-Afonso Machado, 13.12.20

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As últimas provas já foram revistas, passou-me pelas mãos um exemplar que, de incompleto, tinha apenas as folhas por colar. O editor está contente.

São cinco contos onde mergulhei até aos mais imaginativos comerciantes, desses que do nada faziam muito, para os filhos - de boca-de-sino à Anos 70 e cabelo pelas costas, lambido, escorrendo óleo, - estourarem na borga e no jogo e fugirem, e por isso revisitei ruínas, negócios que o tempo comeu; repesquei papelarias e livrarias de escasso movimento, senão para o tabaco e o totobola; voltei a inaugurar o antigo hotel e instalei nele uma senhora da Capital em bulha acesa com a horda dos caixeiros-viajantes ali hospedados; o sinaleiro regressou ao seu posto, no cimo da vila namorava-se onde outrora era a partida dos condenados para o local da forca... Os meus personagens são gente de antigamente, quando não do futuro, conquanto hoje já - ou ainda... - por cá andando.

Ou, se não são, podiam ser. Talvez sejam irmãos de outros com quem, ao longo da vida, fui lidando. 

Não farei apresentações do livro. Não estamos em tempo disso, óptimo pretexto para me escapulir a essas embaraçosas sessões. A edição é pequena e não a queremos ver submergir no mar de livros que nesta altura se acumulam nos sítios do costume.

Pelo FB, por SMS, por mail... falaremos depois. As entregas por correio ficam a cargo do mais competente carteiro do mundo - o Figueira, muitos o conhecerão já.

 

Agora foi - de caras com a minha personagem

João-Afonso Machado, 10.12.20

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Só amanhã a Salette voltaria a massacrar-me o espírito. Trouxe, conforme lhe pedi, o chá de camomila e já nem me lembro se dei as boas-noites à Dona Mécia e ao Egas. Sei que dormi como um calhau acordado pelas lambidelas deles. Passava do meio-dia. A custo fui reorganizando as ideias, dando-lhes cronologia e sentido. O acento tónico residia no recado do Nel. Com que então, a minha personagem era de Lisboa!!!

A maré corria ruim. Estávamos no S. Miguel, vinham aí as Feiras Grandes; depois as rendas dos caseiros e, de caminho, o Natal e a invernia. Logo a Páscoa, as sementeiras e a colheita. Havia que olhar pelo velho morgadio! Só lá para o Verão...

Entretanto, poetaria. Dar-lhe-ia, à minha personagem, em soneto, cabeça, tronco e membros de deusa olímpica. E fá-la-ia gente de inalcançável acesso, senão a minhotos e outros titãs. E esperaria biblicamente pelo seu advento.

Assim atirei abaixo umas tantas perdizes e risquei no chão, com o meu cajado de marmeleiro, o calendário e as curvas mais lindas do seu ser. Sempre em silêncio, não fosse a malquerença da Arlette ou do Nel me ouvir.

No Verão, finalmente, com o milho já a dourar, anunciei férias. - Oh! Salette, vou uns dias para os Senhores meus primos. Você olhe por isto, entenda-se com o Sousa, está aí, nesse papel, o telefone para qualquer emergência.

E fui. O Primo Zé Aniceto tem uma casa magnífica em Sesimbra e recebe como só ele mais a Prima Zizi. A estadia era sem prazo datado.

Pois numa dessas tardes de praia, não sei o que me deu, levantei-me de um salto. - Primo, estás bem? -  Estou, estou, vou só dar uma volta... - Queres companhia? - Não, bem hajas, prefiro ir sozinho...

E toca a marchar, naqueles areais comidos pelas rochas ressoando ao sabor das ondas. A passar os bicos das falésias por penedos que assustavam - Mas que é isto? - pensava eu - no Douro o calor é maior e o tombo também...

De fraguedo em fraguedo cheguei a uma praia vasta, atrás de mim o fantasma de Setúbal, andam agora por lá com umas construções do demo, galinheiros sobrepostos em cima do mar!

Foi quando a vi, a minha personagem. Sem dúvida, juro por Cristo! Tostada do sol, loira, caminhando na orla das águas. (O Nel é um selvagem!) O vestido leve a tapá-la, um olhar indecifrável... Cara a cara comigo e a natural cortesia de um cavalheiro - Boas tardes! - Em resposta, um vago aceno de cabeça. Como descrevê-la?

Oh! Como descrevê-la?! Dêem-me respiro, que eu logo a descrevo.

 

Por causa da saudade

João-Afonso Machado, 08.12.20

Ao longo dos anos, criei e treinei muitos perdigueiros portugueses. Biografei cada um, creio que só com o intuito de deixar esses escritos aos meus filhos. E agora, ao de leve, apetecem-me umas palavras sobre três cadelas, minhas queridas.

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A primeira, a Minês. Trouxe-a pequenina, cedo a levei à caça e a estraguei com a fossanguice das lebres. Cão de parar não é cão (no caso, cadela) de correr atrás dos bichos. Aquilo é estacar, esperar, ouvir o tiro e ir buscar. Pois as lebres, nessa magnífica caçada alentejana, baralharam-lhe o instinto. Ainda assim, bocou sempre bem e com a boca tenra, sem estragar as aves. Um dia, roubaram-ma, mais nada soube dela, não obstante as minhas tantas procuras. Não sei se é viva ainda - mas se o autor da proeza ler estas linhas (quanto eu gostava!), também perceberá que há muito chumbo encartuchado para lhe cobrir o feito e me apagar a dor...

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Assim fiquei com a sua filha, a Tareja. Gravemente doente, quase logo à nascença, vingou por milagre e, em casa, nunca outro canídeo foi tão tímido. Porém, em terrenos de caça, transfigurava-se e jamais tive uma máquina caçadora assim. Topava as perdizes para mim e para todos os parceiros do grupo. Sem se afastar aqui do jovem, parava, esperava, ia ao cobro. Morreu trágica e estupidamente, esmagada pelo pescoço no recuo de um jipe... Ao menos, jurou-me o veterinário, num instantâneo que não a deixou sofrer.

Merda de vida, a de um pai dos seus cães!... Já Torga escrevia (Nero, in Bichos) - «E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa (...), quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou os olhos e morreu» - esse perdigueiro, o Nero.

Sobrou a prima da Tareja, a Dona Mécia. Uma madame. Como segunda cadela, nunca lhe dispensei grande atenção de caça. Foi sempre mais caseira.

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Uma bricalhona, tanto quanto mimalha e possessiva. Traz bem à mão mas gosta pouco do barulho dos tiros. De caminho, está envelhecendo, mais sossegada, mas sempre de olhar meloso, à espera de uma festa, uma beijoca. Não será mais do que é. E agora é uma boa companhia citadina. Anda diariamente comigo. Um dia destes, apresento-a aos juízes da comarca e, enquanto discuto algum acordo judicial possível, ela conta-lhes as aventuras dos seus pares. Pode até dizer-lhes que aqui o pai se inspirou naqueles olhos a derreterem-se para intitular um novo livro. Não é mentira.

 

No tropel do Tempo

João-Afonso Machado, 07.12.20

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Em lugares do meu sangue ainda se ouve à distância sapatear na pedra. E os cães ladram excitados por esse ritmo que já não é de todos os dias. Nem sequer brotando de dentro, antes das redondezas, simpática vizinhança e abençoados domingos e feriados...

Então, a calçada enche-se do matraquear dos cascos. Os grupos de pedestres param a deixar passar as atrelagens, como quem folheia um pouco à pressa a história de antigamente. E a admiração cresce com algum esquadrão de cavaleiros, numa carga heróica contra o tempo, fazendo-o recuar, espadeirando as motorizadas.

Assim a minha vadiagem me conduz a memórias saudáveis e carregadas de sentido e estética. Muros graníticos, ramadas, o sol outonal... Ainda nadamos, à tona do plástico.

Possa, por isso, o presente ser apenas um momento menos bom, com sucessores muito melhores. Até que, na dança das cadeiras entre o antes, o agora e o depois, a gente se ria porque foi o passado que perdeu o jogo e ficou de pé.

Era vivermos felizes hoje: entusiasmados pelo tropel de amanhã, sem ressentimentos com ontem.