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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Quando a Orly entra nos 'entas'"

João-Afonso Machado, 28.04.16

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Em 1976 abria ao público, na Avenida, a Orly, barbearia-cabeleireiro. Nesse mesmo 1976 em que eu dizia adeus a Famalicão por três décadas e meia vividas entre o estudo e a profissão. É certo, visitava então, amiúde, esta nossa terra – mas naqueles vagares de sábados e domingos em que o tempo é todo de desleixo e repouso. Por isso não me fui apercebendo desse convicto marchar da Orly até aos 40 anos que já completou, e os muito mais do seu futuro.

Foi um meu colega e amigo famalicense, logo que regressei e me instalei, – e lhe perguntei por um estabelecimento onde aparasse a barba e desse duas tesouradas no cabelo – quem prontamente recomendou a Orly. O seu poiso habitual e do seu filho também. Fui lá… e continuei a ir. De conversa em conversa até completar o puzzle da sua história. Desde 1976, quando a Orly surgiu contra ventos e marés e as portentosas cabeleiras, aqueles bigodes quase a tapar a boca, as suas guias sucumbindo à força da gravidade, pareciam ameaçar o ofício. Não tinha sido a altura ideal para arriscar o negócio, pensei. Mas não, tudo estava previsto. Os fundadores, os Srs. Aires Silva e Gabriel Lima, trouxeram consigo a novidade da lavagem da trunfa e os secadores, em suma, a arte de pentear. E desta forma abriu a função os seus horizontes bem para a frente da tesoura e da navalha. Os cavalheiros iam lá cuidar a sua ondulação capilar, as patilhas bem aparadas, amanhã era domingo, o dia dedicado à namorada… Assim nasceu para a potencial clientela o vanguardismo do Salão Orly Cabeleireiro.

E muitos dos fregueses de há 40 anos ainda hoje o são. Eles ou a sua descendência. De bisavós a bisnetos. Entre gente que já partiu e outra de recente chegada, que vai ao corte pela mão do pai…

É o que me conta o Sr. António Silva, o actual proprietário e gerente – de quatro cadeiras sempre em funcionamento simultâneo. Ele que, muito no início da Orly, por lá apareceu a fazer a sua aprendizagem, observando atento o manejar das tesouras e dos pentes, o deslizar acautelado das navalhas pescoços acima, pelos queixos até às orelhas. E depois vassourava do chão o pelo caído, tarefa para os mais novatos, até que um dia lhe foi confiado o primeiro “paciente”, uma “barba e cabelo” inteiramente a seu cargo… Estudava então no liceu, e deste jeito acrescentava uns dinheiritos à mesada e se ia entusiasmando com o mester. Ao ponto de as notas escolares começarem a cair pauta abaixo, entrando em força e quantidade na zona interdita da raposa

Tornou-se necessário optar entre os estudos e a vida profissional. O resultado no presente está bem à vista: o Sr. António Silva vai ao leme da Orly, ele e os seus funcionários participam regularmente em acções de formação – a última decorreu em Paris – estudam as novas “tendências”, quer dizer, as bizarrias que a rapaziada em geral vai desenhando com as barbas e cabelos respectivos. Estou informado: vem aí, brevemente, o estilo Elvis Presley.

Mas em tudo isto há perseverança, bem servir e visão. A Orly representa uma marca de produtos cosméticos masculinos, a American Crew; significa uns tantos postos de trabalho, dispõe de instalações amplas e confortáveis; e, em maré de espera pela vez, o tempo escoa facilmente entre a leitura dos jornais e um naco de cavaqueira.

 

(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 28.ABR.2016)