Por causa da saudade
Ao longo dos anos, criei e treinei muitos perdigueiros portugueses. Biografei cada um, creio que só com o intuito de deixar esses escritos aos meus filhos. E agora, ao de leve, apetecem-me umas palavras sobre três cadelas, minhas queridas.
A primeira, a Minês. Trouxe-a pequenina, cedo a levei à caça e a estraguei com a fossanguice das lebres. Cão de parar não é cão (no caso, cadela) de correr atrás dos bichos. Aquilo é estacar, esperar, ouvir o tiro e ir buscar. Pois as lebres, nessa magnífica caçada alentejana, baralharam-lhe o instinto. Ainda assim, bocou sempre bem e com a boca tenra, sem estragar as aves. Um dia, roubaram-ma, mais nada soube dela, não obstante as minhas tantas procuras. Não sei se é viva ainda - mas se o autor da proeza ler estas linhas (quanto eu gostava!), também perceberá que há muito chumbo encartuchado para lhe cobrir o feito e me apagar a dor...
Assim fiquei com a sua filha, a Tareja. Gravemente doente, quase logo à nascença, vingou por milagre e, em casa, nunca outro canídeo foi tão tímido. Porém, em terrenos de caça, transfigurava-se e jamais tive uma máquina caçadora assim. Topava as perdizes para mim e para todos os parceiros do grupo. Sem se afastar aqui do jovem, parava, esperava, ia ao cobro. Morreu trágica e estupidamente, esmagada pelo pescoço no recuo de um jipe... Ao menos, jurou-me o veterinário, num instantâneo que não a deixou sofrer.
Merda de vida, a de um pai dos seus cães!... Já Torga escrevia (Nero, in Bichos) - «E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa (...), quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou os olhos e morreu» - esse perdigueiro, o Nero.
Sobrou a prima da Tareja, a Dona Mécia. Uma madame. Como segunda cadela, nunca lhe dispensei grande atenção de caça. Foi sempre mais caseira.
Uma bricalhona, tanto quanto mimalha e possessiva. Traz bem à mão mas gosta pouco do barulho dos tiros. De caminho, está envelhecendo, mais sossegada, mas sempre de olhar meloso, à espera de uma festa, uma beijoca. Não será mais do que é. E agora é uma boa companhia citadina. Anda diariamente comigo. Um dia destes, apresento-a aos juízes da comarca e, enquanto discuto algum acordo judicial possível, ela conta-lhes as aventuras dos seus pares. Pode até dizer-lhes que aqui o pai se inspirou naqueles olhos a derreterem-se para intitular um novo livro. Não é mentira.