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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Os bolarecos da D. Alexandrina"

João-Afonso Machado, 26.08.20

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Andando eu doentinho, era certo o mimo da minha Avó: as bolinhas de coco, ora brancas, ora amarelas, conforme enroladas em clara ou em gema do ovo. O coco! Esse fruto empedernido e capaz de, ao cair do alto do coqueiro, rachar a cabeça a qualquer paisano! Nas Áfricas longínquas, não ali, transformados em raspas brancas, niquinhos que cobriam essas bolinhas e lhe davam um sabor especial. Quase ninguém gostava de coco lá em casa, pelo que a lata de bolachas que a Avó enchia era minha e só minha, sujeita ao mais descarado ataque, sinal de reconhecimento pela sua inspiração culinária. Sem zangas… Mais a mais, a Avó era a minha madrinha….

Depois, os anos  tomaram o freio nos dentes, um certo dia à Avô o coração disse mais não, eu, rapaz novo, triste, inconformado, fui distraindo essa lacuna de modos diversos – um deles com as éguas da Casa, cavalgando as redondezas - deixando os anos galopar muito mais depressa, até sentir o peso do corpo e dos sessenta, o título de sexagenário, suponho saudável mas mais guloso do que nunca.

Contei-o já:  quando descobri e comprei o meu palácio em Famalicão topei em frente o restaurante Portuguesa, o meu spkear’s corner. Futebol, política e coisecas da terra. É onde regularmente almoço ou lancho e janto.

Não que seja um lugar de variadas sobremesas. Mas há ocasionais surpresas. A mais recente das quais, os bolarecos da patroa, a D. Alexandrina.

Um passo fundamental para a História famalicense. Evidentemente, não posso revelar a receita. Apenas direi, o doce é feito a partir de um tipo de bolos de feira, iguais aos que o nosso trolha de antigamente nos oferecia quase todos os dias, difíceis de rilhar, mais duros do que a dentição, bolo penoso de duração indeterminada na sua deglutição. Somente, ali aparecem moles e saborosos. Recheados de marmelada por dentro e polvilhados a coco por fora. As tais raspas, a caírem do prato, que a gente depois com os dedos apanha e saboreia. O bolareco da D. Alexandrina, das pedras do deserto transfigurou-se num doce o mais apetecível que este mundo nos consegue proporcionar.

O fenómeno atinge, aliás, maiores proporções. Numa rápida incursão histórica pela Ordens religiosas de cá, descubro o mosteiro de S. Francisco, em S. Martinho do Vale, muito empreendedor na confecção de hóstias. E nada mais! Ora, sendo a D. Alexandrina uma santa senhora, os seus bolarecos tem, inquestionavelmente, de ascender ao estalão e à qualidade da doçaria conventual. Ela não se importará, pode até mudar-se o nome do manjar – secretos de anjinho, por exemplo; ou maminha do mesmo

Depois será o costumeiro percurso: a feira dos produtos artesanais, o reconhecimento dos forasteiros, a glória Europas e Asias fora. E uma latinha deles para cá. Por este meu modesto contributo… Ou talvez não: é deixar a minha dilecta sobremesa na sua fonte. Lá continuarei a banquetear-me. Avante, Portuguesa! Casa nobre de acepipes únicos.

Era o que, no outro dia, uma gordalhufas exaltada proclamava na caminheta: pela próxima quarta-feira iria lá por uma saca toda de bolarecos. Ah, pois!

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 26.AGO.2020)

 

 

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