Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

O monstro saramela

João-Afonso Machado, 13.02.19

EM MOVIMENTO.JPG

Lá dentro sentiram as lages do átrio a tremer. Chovia e ventava, o inverno não dá tréguas. Soltaram-se muitas vozes, todos empurrando uns para os outros a audácia de ir à porta ver quem era. Porque de antemão se sabia.

A saramela rugia de silêncio, em gestos guturais de assentar as patas nos degraus das escadas e vinha, mole, avantesma, desajeitada, no roldão da pedra britada, estilhaçada ao seu peso. Descomunal saramela, os olhos dois buracos negros encimados de amarelo-corno garrido, a cauda como um ariete que não investe e a boca o fundo voraz de um deus sumério, ávido de sacrifícios humanos. Pobre gente, pobre terra, nestas noites geladas de escuridão e saramelas à solta.

Monstro execrado, monstro imensamente maior do que aparenta ser. Um monstro, a saramela, do tamanho de toda a imaginação dos minhotos antigos, alimentada e crescida nos lares de quantos serões a sua história lhes deu. E os minhotos antigos não duvidavam: quem não cuspisse à vista de uma saramela assumia-se seu padrinho de pia. E de outro modo jamais será. Acrescendo todas as calamidades que este inferno pintalgado, carregado de peçonha, com certeza provoca, dias aziagos são sempre bruxedo da saramela.

Enquanto isso, os citadinos, torcendo-se de nojo - mais de nojo do que medo - simplesmente se valem de métodos modernos e automóveis para as eliminar. No resto, muito ignorantes, chamam-lhes salamandras.