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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

O chefe da estação

João-Afonso Machado, 16.02.16

ESTAÇÃO GRANJA.JPG

Nesse tempo o espaço era mais amplo e havia ainda o vagar das horas e um jardinzinho junto às latrinas. O movimento de gentes muito sumido e, da rua, entrava-se na estação por uma das muitas portas abertas, passava-se a bilheteira às moscas e saía-se na plataforma. À esquerda os carris desenhavam uma curva larga, vindo para cá rectilineamente, até se unirem ao longe, no fim do horizonte. Nas vias alternativas preguiçavam vagões de mercadorias e carregadores de azul surrado, cheirando igual ao calado armazém mais afastado. As tardes pareciam uma folga perpétua, chuvosas ou solarengas, num andar de compasso dos ponteiros do relógio na parede. Somente não sossegava o telefone estridente no gabinete do chefe da estação.

Bem nutrido, fardado de castanho com muitos botões metálicos, amarelados, e o boné branco, quase de almirante, solenemente levado à cabeça a cada passagem do comboio...

A estação era um lugar de cavaqueira, para muitos um ponto de partida ou chegada, para mim de observação e sonhos, das mais filosóficas interrogações acerca de cada cara bonita à janela das carruagens. De onde viriam, para onde iriam, quem as esperaria?... Há muitos anos, nas férias de Setembro na quinta do Avô, quando se tornava necessário deixar o rio descansar o seu peixe.

Um grande copincha, o chefe! A um canto do seu gabinete havia uma mirabolante maquineta que sinalizava com luzes intermitentes a chegada dos comboios às estações vizinhas, a norte e a sul, anunciando estar para breve o esforço de se levantar da secretária e empunhar a bandeira vermelha, toda enroscada, como se fosse um bastão de comando. Devidamente enchapelado, claro, e sempre deixando ficar pelo caminho  (tanto mais que o Avô era um funcionário de peso na CP...) uma recomendação de cuidado.

Mas a minha familiaridade com estas coisas do caminho-de-ferro proporcionara-me já saber quando devia sentar no banco de espera sob a coberta, por causa da deslocação do ar - o comboio parecia uma bala, um grito perfurante de alerta vindo com ele, um vento na cara, era o rápido ou o foguete; ou quando podia acompanhar o chefe até á locomotiva e assistir à breve conversa com o maquinista - um fugaz, profissionalíssimo, dar de olhos no relógio de pulso e o apito à boca, muito agudo, degenerando numa bufa. A máquina soltava então uma gaitada e lá arrancava, talvez já muito reumática.

E esse amigalhaço, o chefe da estação, sequer deixava adviesse a impaciência, incutia ânimo se o comboio marcava passo e a luzinha vermelha estagnava na maquineta, era sempre um filme de cowboys a passagem de um mercadorias (- Vem atrasado, está parado na Pampilhosa à espera do regional... - Mas está atrasado quanto, sr. chefe? - Uns vinte e cinco minutos, menino, uns vinte cinco minutos...), aqueles seus vagões infinitos, alguns descobertos, com uma guarita no alto e a escolta de olho nos índios, o transporte de gado se não fosse a monotonia dos sacos de cimento... E ralhava, ralhou-me uma vez alto e bom som (- Assim faço queixa ao Avôzinho!) quando me apanhou a semear caricas nos carris, para que o cavalo de ferro as espalmasse, um excelente meio de encravar o mecanismo dos matraquilhos no café...

Era um sábio, enfim, o chefe da estação. Sabia já o que nós só agora sabemos: ter pressa é uma perda de tempo. O tempo de que, com certeza, já se libertou, eternamente de boné de almirante e bandeira manejada como um bastão, soprando pífio o seu apito em todas as estações da bondade.

 

 

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