Na estação, esperando o Passado
Era um propósito já muito velho, sempre adiado, o de visitar o amigo em pleno coração transmontano desterrado, um antigo furriel da mesma fornada no Ultramar.
Fora uma época dura, dessas que deixam cicatrizes no corpo e a memória em chaga viva e apenas pela camaradagem salva da infecção fatal.
Não tinha carro. Não tinha emprego. Aliás, não tinha grande asseio também. E ninguém tinha consigo. Ainda assim, depois de décadas, teve a sorte de uma boleia até à Régua. O ex-furriel, o tal antibiótico como só em Trás-os-Montes os há, e o medicara com o dito transporte arranjado por um conhecido vindo ao litoral em negócios de azeites, - esse velho camarada, afiançou-lhe fosse da Régua ao Pocinho, de comboio, e encontrá-lo-ia à sua espera na estação.
É para o que ele se prepara, por uma vez empenhadamente. Não negligenciou a barba, deixou o barbeiro lhe lavasse o resto de óleo cabeludo e foi ao armário buscar os seus sapatos pretos, muito cambados, as calças de vinco e uma camisa branca. Quem não tem emprego não faz contas aos dias, a mala rota e de muito chiar nas ferragens acolheu umas peçasitas de roupa, umas fotografias ainda dos idos militares e um chouriço bem embrulhado, de prenda para o anfitreão.
Estará agora na Régua, aguardando a automotora para o Pocinho. No curso de tantos anos, o que se lhe deparará pela frente?
(E eu, que o construi com a minha caneta, digo que o tempo de ontem produz os mesmos efeitos enigmáticos das fulgurantes tecnologias de hoje...)