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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Memórias vilacondenses (XXVI)

João-Afonso Machado, 05.08.17

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De tudo o que mais gravado ficou no andar dos tempos foi o incansável palrar do silêncio da Bento de Freitas, naquelas manhãs de nevoeiro sem fim à vista. Não chegariam tão cedo ordens superiores para levantar da cama e comparecer ao pequeno-almoço. Mas é como tudo na vida: o fruto consentido é o menos apetecido. E a rua, calada, húmida, cinzenta, falava pelos cotovelos. A gente vinha para a janela ouvi-la.

Era o ziguezague das peixeiras a trupar às portas todas de um lado e do outro. Naquela ampla zona de mercado franco, o preço vencedor pertenceria à garganta mais audaz, mais falaz, mais convincente. Era já alguém, madrugador, a caminho do mercado. Era mesmo, em tempos remotos, a leiteira com a bilha e as suas medidas. Sem burburinho, todos falavam, todos se ouviam. Mesmo aproximando-se o ruído desengonçado das carretas do lixo.

Vinham geralmente às duas e às três, verdes, atulhadas de papel e folhedo, o vassourame de lado, empurradas por mulheres já de idade, avantajadas e bigodentas. Não sei o que me deu, nesse ano em que aprendi a andar de bicicleta, vi-as desfilando a par no empedrado da rua. E foi tal a minha preocupação em passar ao lado que acabei esbarrando a bicicleta nas pernas da do meio. - Aqui d'El-Rei que o moço é maluco! Pois não é que me esfolou a canela toda?!

A coisa pôs-se feia, vi umas mãos aproximando-se perigosamente do arsenal de vassouras. E volvi em retirada. Pedalei com quanta força tinha. Não mais cismei em colisões. A velhota cá atrás insultava o silêncio da Bento de Freitas. Mas eu aprendera a sprintar.

 

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