Memórias vilacondenses (XXII)
Nos primordiais anos eu via as corridas encarrapitado num banco à janela da varanda das traseiras. Sobretudo ouvia-as, enquanto os carros, como baratas, eram um instante entre a esquina do Sr. Minhava e a do quintal dos Lencastres. Quem for de então percebe perfeitamente o desenho e talvez consiga imaginar-me com os meus Matchbox, a minha própria escuderia, pela tarde fora circuitando nas tábuas do soalho, com frequentes vindas aos janelões de guilhotina, assim que o troar da competição se abeirava dessa nesga de panorama ao longe, um campo imenso aberto para os sonhos de um dia mais tarde e mais meu.
E essas baratas, esses instantes, esses motores, ainda agora, meio século depois, me enchem o espírito de solarengas fantasmagorias: a recta do Castelo, a meta, as boxes, as dunas, o espaço todo pairando no tempo. Porque não nos resta mais senão sufragar Vila do Conde? Porque abrimos a mão e deixamos as gerações cair no abismo do esquecimento?
Acima de cansadas, há memórias com medo, propositadamente esquecidas. Crendo ser esse o segredo da longevidade. Se é, eu dispenso-a, a longevidade desprovida de imagens e sensações. Por isso a minha emoção quando do cinzento dos dias emergem as cores, ingénuas mas alegres, dos bólides de então, roncando e solavanqueando das boxes para a meta. Talvez até ainda nem tivese nascido, mas não duvido, o circuito estava ao rubro e o comissário do Estrela e Vigorosa Sport aprestava-se para dar mais uma partida.