Félix, o capitão-do-porto
Nascera talhado para olhar o oceano, ouvi-lo ou adivinhá-lo, mas sempre a uma distância prudente, como lhe recomendou toda a vida a sua mãe. Nascera perto da foz, o pai andara nas obras do cais, e ele nunca fora à pesca, tal o medo de cair à água e morrer afogado.
Na praia, quando, num rasgo de audácia, a visitava, não sabia do que fugir mais depressa: se do mar (a não ser das pocinhas da maré baixa), se do cabo-do-mar e do seu cassetete.
Mas Felix gostava realmente de olhar o oceano. De o ouvir e adivinhar, de pressentir a aproximação da tempestade para logo fugir dela, no calorzinho da braseira da sala. Felix nunca se aventuraria além deste lado tranquilo da barreira, mas recusaria sempre ir para longe do litoral. Onde, fizesse sol ou chovesse, envergava todos os dias o seu ar macambúzio, assustadiço, caminhando ordeiramente para a escola. Era um aluno exemplar, disciplinado, posto em cima da braseira da sala a fazer contas. Onde estudou para capitão-do-porto sem nunca ter aprendido a nadar, muito menos a navegar.
Mas ei-lo um dia em frente a sua casa, no outro lado da rua, à porta da capitania. Em pleno cais. Um dia de mar chãozinho, felizmente, e de muito desvanecimento familiar. Tomava posse do cargo e o boné branco, cheio de dourados, ficava-lhe como a um almirante. Sorriu, momento raríssimo. Por instantes convenceu-se que, com ele, não voltariam as intempéries. Estava calmo.
Ontem surgiu na televisão. Enfiado num blusão que lhe escondia o queixo tremelicante. Macambuzio e assustadiço. Infeliz, perigosamente posto na marginal, a desfiar o pesado rosário dos cuidados com a borrasca que vinha aí. E a falar imperceptivelmente (o queixo tão tremelicante!...) de caudais, correntes, marés, de toda a traiçoeira violência dos elementos.
Não determinou o recolher obrigatório mas nem por isso deixou de avisar, quase ameaçar, um grupo que por ali fotogafava as ondas bravas - que não esquecessem, em caso de desgraça não disporia de meios aéreos ou marítimos para os salvar!
E dito isto, transido de frio e de medo, atravessou o jardim público em passinhos rápidos e refugiou-se no seu observatório, na sala, com os pés na braseira.