O Endovélico
Em A Voz dos Deuses, de João Aguiar, entre os montes e os matos, entre os céus escuros e as manhãs brumosas, estava Endovélico, a divindade lusitana. E não havia guerreiro que, em sangue, não o atendesse cumprindo sempre o seu sacrifício ritual.
Era o tempo do invasor romano e das grandes pedras que os autóctones lhe arremessavam de emboscada.
Mas ao fim de muitos séculos Endovélico sacudiu o musgo e as teias, esqueceu a sua Idade do Bronze e tornou-se sol e estio. Arrastou o trono até à nossa pontinha mais atlântica, logo antes do fim do mundo; aí se dispôs, as barbas longuíssimas e alvas, e o deus carregado de mistério e de coloridos milagrosos de tão brilhantes ou afogueados. Dizendo palavras ecoadas de paz e serenidade.
À distância protocolar que os todo-poderosos guardam dos seus aúlicos e veneradores, Endovélico dás-se a aparições e audiências diárias. O povo é muito e variado e para seu assento ficaram as escarpas vicentinas.
Ali se murmura, ali se reza e contempla. Ali se entrechocam tantas linguas e dialectos. É invocado sob muitos nomes, Endovélico.
Nunca, porém, foram assim os seus fieis, o seu poderio: a sua magestade reinando acima do tempo e da erosão, das muitas vidas que sucederão às actuais, sempre em genuflexão nas escarpas vicentinas.