"Ecos do Carnaval"
Talvez o Carnaval da nossa infância se comprasse menos nas lojas. Julgo nascesse de buscas imaginosas ao fundo das arcas, onde se guardavam atavios avoengos, e o improviso fosse o lado mais divertido daqueles dias de tolice institucionalizada. De uma certa permissividade, até, que tornava a brincadeira assaz mais convidativa. É certo, o Eduardo com a sua espingarda de cano de lata, e um dardo de pau lá dentro, terá sido o único índio que a História regista, de longa cabeleira loiríssima e entrançada. Mas fartava-se de fazer uh-uh-uh com a palma da mão a bater na boca e saltaricava a tarde inteira, bem ao jeito de qualquer guerreiro apache que se preze. E, no resto, os estereótipos eram poucos. Da velha saia da bisavó – com todo o respeito pela defunta – surgia do quase nada uma inquietante bruxinha montada na sua vassoura.
Era o Entrudo. Máscaras de papelão e roupagem de serapilheira para tantos. Agora já não é.
Agora o Carnaval abrasileirou. De Ovar a Torres Vedras bamboleia-se, saracoteia a celulite ao frio – o Carnaval português esqueceu que não está no hemisfério sul – criou escolas de samba e regurgita de foliões resignados à folia, quando não à pneumonia. Naquela triste obrigação de se divertirem ou, ao menos, parecerem divertidos. Nos sambódromos, imaginem! Enfim, ganham os proprietários dos cafés, restaurantes, roullotes de comes e bebes e adegas próximas. É um negócio como outro qualquer.
Tudo a aconselhar, aqui no hemisfério norte, uma bela noite televisiva e o privilégio aceso da lareira, para quem a tiver.
Eis senão quando (as histórias antigas intermediavam ou rematavam assim) – eis senão quando o Carnaval famalicense soube nascer, crescer e enrijecer de forma completamente diferente. Sem importações de qualidade duvidosa.
Dá para visionar a sensaboria de uns tantos carros alegóricos Fevereiro fora na Adriano Pinto Basto e depois na Santo António, naqueles apertos da Praça 9 de Abril, na Avenida… Que nada! O Carnaval famalicense disfarça-se e irrompe a pé da periferia para o centro, em bandinhos, de improviso, ninguém esperando por alguém, guiado pelos rumores distantes da música, crescendo, crescendo, crescendo, de participação e movimentação. Juraria: sinceramente bem-disposto e gozão.
É certo, falo à vontade porque não resido lá no coração do Carnaval. Talvez isso seja pedir-me em demasia… O vento uiva, as bátegas da chuva doem. Não, uma pequena voltinha na vila (leia-se: “no centro”) quando a festa começa a animar é o suficiente. O resto é com a parte sobrante dos famalicenses mais os forasteiros. Mas que é um Carnaval genuíno, isso é!
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 26.FEV.2015)