"Da metafísica do recreio"
Regresso à Telescola da minha meninice. Às longas tardes de emissões televisivas intervaladas pelas aulas em que a matéria transmitida era desenvolvida no contacto pessoal entre professores e alunos. Já agora, com a grande vantagem em que depois nos apresentávamos no liceu, por exemplo na disciplina de Francês… Mas isso são pormenores… Coisinhas de nada quando comparadas com os – hoje meteóricos – então demorados momentos da nossa vivência dia após dia. Como disse, - longas tardes carregadas de manuais, cadernos e outros acessórios – e um lanche no saco de cada um. Latas de refrigerante, pacotes de leite achocolatado, croissants? Não, apenas pão com (ou sem…) manteiga. Literalmente, a “bucha”. Para que não faltassem as forças no recreio maior, o dos jogos.
Era, muitas vezes, o futebol. Uns vinte minutos em que a claque feminina exultava, revelava-se a peça fundamental da engrenagem. Eu aprendera o lugar espertalhão da proximidade da baliza adversária, à coca de qualquer ressalto de bola e do chuto fulminante, o golo fatal. Como daquela vez, em prélio marcado para uma manhã de sábado, íamos jogar contra os do 1º Ciclo da escola pública, uns sabidões, isto no pelado do F. C. Famalicão, a páginas tantas o Zé Carlos capitaneou a avançada, rematou à figura do Ulisses, o guarda-redes deles, a bola veio para mim, o Ulisses (a jogar descalço) sozinho pela minha frente, a baliza enorme, a emoção também, a perna e o pé parecendo tolhidos, paralisados, tínhamos ido para perder, estava ali a oportunidade única, aquela baliza toda à minha frente, a perna sem sair do sítio, eu podia empatar o jogo, a eternidade dos segundos, o frenesim, força, força…, um pontapé nervosíssimo e a bola, enfim, lá no fundo das redes! Era golo! Goollooooo!
E a corrida, campo fora, de braços abertos, a proeza jamais esquecida. Goolloooo! Resultado final: 1-1. Um brilharete.
(Meses volvidos, em jornada idêntica, regressámos do Seminário comboniano sob uns pesados 18-0. Tudo porque um defesa seminarista resolveu cortar in extremis um centro inteiramente destinado à minha pessoa, posta diante do guarda-redes deles. Não fora assim, o resultado modificar-se-ia para um tangencial 18-1, isso é certo).
Mas o futebol indiscutivelmente perdia para o “mata”. O antepassado português do baseboll americano. Será que ainda se joga hoje, nas nossas escolas, o “mata”? Sem ser na playstation ou no Ipod? Essa disputa mista (masculina e feminina) em dois rectângulos geminados, de área ampla, traçados a calcanhar na terra dos campos que rodeavam o Posto 145 telescolar. Com os “atiradores” postos nas suas extremidades e a bola a cirandar por alto, de uns para os outros (cuidando de que não caísse nas mãos da equipa rival), até ao momento do disparo a matar sobre aquela multidão aquartelada no rectângulo das vítimas a abater. Membro (do team contrário) acertado, membro afastado – morto). Por norma, é óbvio, ficavam para o fim os mais ágeis. Aliás – por norma, também, as mais ágeis. E a beleza do jogo residia muito nisso – em vê-las pulando, encolhendo-se, esquivando-se, tropeçando a fugir às mortais boladas. O “mata” entusiasmava, piscava o olho, despontava cumplicidades, descobria belezas ignoradas, adubava corações amorosos.
Como tantas outras tardes vividas para sempre comigo. Como se agora mesmo mastigasse o meu pão com manteiga, com alguma sorte umas bolachas Maria também. Na espera ansiosa de ser selecionado para mais uma equipa de “mata” e participar naquela balburdia de fugitivos, sempre a fazer figas para aguentar, aguentar, elástico como o Super-Homem (ou o Bip-Bip, vá lá…), eu e ela, os dois resistentes finais…
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 06.ABR.2017)