"Correspondência camiliana"
Muito à distância das sempre dispensáveis lições de moral, ou de catastróficas visões do mundo, absolutamente desprovido de qualquer sintomatologia profética, eu olho para as (ou “os”?) SMS’s e para o Facebook e pergunto-me pelo português. Pelo léxico português, pela gramática portuguesa. Por Portugal. Alguém escreveu um dia, «a nossa Pátria é a nossa Língua» e por tudo me sinto perdido no mapa, às voltas com estes pensares de jarreta que conquistam toda a minha concordância.
De algum modo, penso eu, as palavras escritas, assim como as faladas, servem para exprimir as nossas ideias, emoções, estados de alma. Sejam elas então contundentes, ásperas ou macias e sorridentes, consoante o que nos vai cá dentro. Que os telegramas, só em situações de urgência.
Todo este longo introito para explicar uma minha descoberta recente, um punhado generoso de cartas inéditas de Camilo Castelo Branco. Cartas que permaneceram guardadas no silêncio de uma arca durante mais de um século e, assim respiraram a luz do dia, logo revelaram os bons e os maus momentos do seu signatário. Como ele sabia troçar, criticar, chorar, como o grande escritor, através das suas missivas, pode em qualquer tempo surgir diante de nós – exactamente: como se estivesse diante de nós! – e, num instante de bom humor, rematar a conversa dizendo - «não sei se V. Ex.cia faz colecção de caras feias. Aí vai uma com que pode abrir a sua galeria» - que é um bocado de ironia incapaz de caber num (numa?) SMS, insisto, ou como ninguém hoje redigiria um comentário no Facebook, a propósito de um tormento qualquer, na elegância com que a sua pena marcou no papel - «a dor sincera primeiro que as cerimónias da convenção» - ou, mais indignadamente, - «dir-se-ia que eu pretendo saldar contas com frases» - outro meio de deixar claro não gostar lhe chamassem caloteiro.
Depois, num breve bosquejo pelo Camilo desalentado, a gente lê - «quando D. Ana Plácido agradecer aos generosos e caritativos cavalheiros que rodearam o leito do seu filho moribundo, enviará o seu cartão aos médicos; e as suas lágrimas aos amigos» - e não demora a perceber a diferença entre o fraseado de circunstância e a beleza com que mesmo durante as maiores dores justamente as poderemos manifestar. Assim também no tocante à revolta (Camilo escrevia de profissão, o seu contrato era com os leitores dos seus livros…), ao desabafo, afinal, por trás da chalaça, - «quando escrevi essa futilidade que o fez rir tinha a cabeça amparada na mão esquerda enquanto a outra traçava as imortais asneiras»…
O que muito ajuda a perceber, Camilo na vida essencialmente sofreu, muito cedo foi aprendendo a lidar com o sofrimento. Baixou os braços cansado, reconheceu o seu peso - «há apenas uma coisa que chega a ser perfeita nesta vida – é a desgraça». E, face a face com a desgraça, - «enquanto puder chorar, fuja de quem queira estancar-lhe as lágrimas. Olhe que não tem outro desafogo».
Gritava-lhe bem alto a sua experiência, mesmo a sua solidão. Por isso se despediu na carta que escrevia a alguém da sua confiança - «abraça-o com o coração o seu velho amigo» - ficando nós a pensar, hoje em dia como é possível abraçar-se com o coração, quem se lembraria de se abraçar assim, quando agora vai tudo corrido a “abrç’s” e “bjnhos”.
«São os bigodes da alma a tingir-se» - constatou Camilo de si mesmo. Pois também sejam comigo talvez assim. Só nunca me ocorreria a imagem do genial mestre das palavras. Esta e tantas outras estampadas na sua obra, na sua correspondência, o reflexo da sua tristeza e causticidade. E esses documentos, o eco fiel dos seus sentimentos, coligi-os num livrito recente que intitulei Memórias Redivivas. Publicidade e modéstia à parte, diz quem leu, gostou. Eu gostei sobretudo de confirmar, é pela sua obra que os homens se imortalizam. Qual Camilo, cinco quartos de século depois.
(Da rúbrica De Torna Viagem, in Cidade Hoje de 12.JAN.2013)