"Cantinho de Natal"
Os preparativos na cozinha, quase ultimados, seguiam o ritual de muitos anos. O rumo de todas aquelas travessas era o da mesa da sala. Nada fora esquecido e, numa onda crescente, instalava-se um ambiente de suavidade e ternura acalorado como um abraço. Talvez o descanso depois da azáfama, dos derradeiros votos de Feliz Natal! espalhados com o coração na imprevista descida à mercearia, por uma garrafa de Porto, um sortido mais de frutos secos.
Eram os dois, o casal, já em maré de cada dia uma vida. Tinham decorrido muitas décadas desde que o filho mais velho sucumbira numa emboscada em Angola. A rapariga, depois, casara e partira para França, não a bafejara a sorte: telefonava, escrevia de quando em vez, o regresso definitivamente estava posto de lado. Tudo doera, doía, muito. Tinham-se um ao outro, eram gente estimada, não faltava quem lhes valesse com provas diárias de dedicação. Consistia nisso a sua família.
Famalicão crescera muito. Longe iam as noites em que o motor de um automóvel, na Rua Adriano, riscava um percurso misterioso de faróis povoando de interrogações a escuridão. Viviam agora a desafogada simplicidade das suas rotinas de reformados. A constância do movimento no lado ignoto da janela da sala era absolutamente alheia ao seu Natal.
Nenhum deles se esquecera de uma pequena lembrança – mais do que uma surpresa, um desejo adivinhado, sorrisos rasgados de gratidão – embrulhos aguardando a sua hora aos pés do pinheirito decorado conforme os usos da quadra. Sem quaisquer artifícios electrónicos…
Ela dispensara-o dos arranjos finais, de modo a consentir-lhe acompanhar as notícias televisivas, um olhar arrepiado e protegido sobre quantos desmandos assolavam o mundo. Impensavelmente nessa noite! E depois foram cear – o que todos adivinham, o bacalhau cozido, pesadas garfadas de couves, a batata e o ovo a deslizar no melhor azeite duriense. Uma vez não são vezes e os doces natalícios, ele conhecia-lhe os hábitos, eram incontornáveis e enorme seria o seu desgosto se algum ficasse por provar – as rabanadas, os mexidos, a aletria, o bolo-rei… E um cálice de vinho fino a ajudar a digestão.
O brinde foi erguido no silêncio eloquente de quem diz tudo e tudo reciprocamente deseja de bom, então como sempre. Depois seria um nadinha de televisão como outrora fora o fado da telefonia, no fundo meros pretextos para um conforto que se instalara para não mais ir embora. Não demoraria a meia-noite mágica e a clara visão da Paz chegando consigo.
Lá fora, os enfeites natalícios vindo da Íris até ao cruzamento com a Rua Santo António, alguns longínquos foguetes, recordaram-lhes as boas almas vizinhas, como elas gozariam também as suas Festas. E as suas demoradas vidas de justos, consciências libertas, vencedoras dos desgostos, triunfantes sobre o sofrimento, agraciadas pela Fé. Regradas pelo carinho. – Feliz Natal! - desejaram-se ambos, uma vez mais, antes de fecharem as luzes para o repouso até amanhã.
(In Cidade Hoje de 23.DEZ.2015)