"A samarra"
Enquanto me entretinha fazendo contas aos anos que faltavam para voltar à terra, apimentava projectos com acessórios diversos, por exemplo prevenindo a invernia famalicense. Achei então ficaria satisfatoriamente guarnecido com um capote alentejano de gola magnífica a encher os ombros até às orelhas. Algo pouco usual por cá, de repente ocorrem-me apenas os encapotados nomes do Sr. Malvar, de boina negra, hirto, horas a fio e expressão grave à porta da sua loja de ferragens; o Nuno Carvalho, elevada e fadista estatura; e, presentemente, o meu ilustre Colega Dr. Vieira Pinto. E o tempo assim foi andando, de tribunal em tribunal, cada vez mais primaveril, desencorajando ir tão pernas abaixo, o capote talvez excessivo e adiado, adiado… até que a feira de Penafiel me trouxe à memória a bela recordação das samarras. Como aquela, em segunda mão, comprada por 50$00 na Feira da Ladra e 800$00 na lavandaria, e as demoradas antigas rotas de Lisboa nela aquecidas. Sabiamente fiz o apontamento sem tomar qualquer decisão. A ver iriamos…
Semanas volvidas, dei comigo a vasculhar antigos edifícios da Vila, desses que a gente nunca sabe o que amanhã pode acontecer e o mais prudente é tirar-lhe o retrato hoje mesmo. Na esquina das Ruas Alves Roçadas e Vasconcelos e Castro, lá se arredonda o prédio de dois andares, construção do pós-Guerra, o cimeiro habitacional, o outro de serviços, em que não esquece o antigo consultório do saudoso Amigo Dr. Horácio Jácome, médico sempre prontíssimo da minha Avó, como também não esquece, a toda a extensão do seu rés-o-chão, o toldo da Mercearia Lima.
(O Lima, um rapaz simpático, padecendo de doença grave que precocemente o levou, foi meu contemporâneo no Liceu; a Mercearia, do seu Pai, encerrou antes ainda, dizem-me que em 1982, quando as minhas vindas a Famalicão eram esporádicas e bastante aceleradas).
O estabelecimento quase merecia os galardões de supermercado. Não posso dizer fosse cliente – eu era mais cafés e pastelarias - mas no sossego das fotografias antigas sorvo-lhe agora todos os aromas e variedade de géneros natalícios… E neste lote de invocações surge o pronto-a-vestir que lhe sucedeu – a Texmoda – e ainda lá está. Conforme constatei sempre de passagem, sempre inspecionando as suas montras, até por fim descobrir, pendurada do outro lado da vidraça, a minha samarra.
Entrei, apresentei-me, conheci o gerente, Sr. Cândido Gomes. Falámos demoradamente sobre a samarra, provei-a frente ao espelho, prometi voltar. Tinha gostado do toque clássico da vestimenta exposta. E cumpri a promessa, após uns dias de meditação apareci de novo. Despedindo-me esta vez já embrulhado na samarra, a treinar para quando o frio voltar também.
Há realmente coisas que só nas lojas da Vila. Onde permanece o vagar onde ainda é possível reconstituir os antigos escritórios das empresas de camionagem – a acinzentada Magalhães, a rosada Ferreira das Neves, a pluricolor Soares – a loja de plásticos e artigos desportivos do Santana, o ronceiro elevador para os tormentos odontológicos no Dr. Áureo Moreira, mesmo o escalavrado cinema, a Padaria Torres… e tantos e tantos quadros que o quotidiano famalicense deixou para trás. Talvez porque tivesse de ser assim, mas nunca deixando esquecer quando era assado.
(Da rúbrica De Torna Viagem in Cidade Hoje de 07.JAN.2016)