A rua de nunca mais
Daquela rua, uma exposição de jardins e cores, quase escrevi um dia um romance. Grosso volume, o original lavrado na caneta mais inspirada do meu coração, e passeios largos, calados como lagartos ao sol, a perderem-se na linha do horizonte. Era um tempo de sonhos primaveris, dos tais sempre prenhes de promessas e projectos.
Uma vez, aconteceu, perdi todas as folhas já escritas. Ocorrera uma tempestade, o galope de uma cheia, nada foi possível salvar. Houve mesmo quem ficasse em casa doente, transtornado.
E a rua emudeceu, de costas voltadas para si mesma. Enfiou-se num casulo, a cabeça escondida entre os seus passeios, agora frios, agrestes. As árvores, os canteiros, em cada jardim tudo regrediu à invernia. Pelas quatro da tarde, qual Cristo na Cruz, a rua exalou o seu último suspiro e enegreceu como uma múmia, mas subitamente, ameaçadoramente.
Esqueci o romance, não escrevo ficção de terror. E a rua lá ficou, desvitalizada, remoendo desgraças suas. Olhei-a depois, devo dizer, com alguma comiseração. Manter-se-à um ideal inesquecível, por isso mesmo, jamais um lugar de passagem.