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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"A Net de outrora"

João-Afonso Machado, 17.10.19

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Era quarta-feira e as caminhetas, na Rua Vasconcelos e Castro, partiam em todas as direcções. Já no final da manhã, carregadinhas de gente a disseminar pelas freguesias, e de novidades tão frescas como a sardinha comprada às dúzias no mercado.

Os melhores informes eram sempre os faustos piores. Os mais tristes, os mais sanguinolentos, os mais horripilantes ou escandalosos acontecimentos. Era muito pelas caminhetas que os dramas da nossa terra chegavam a todo o concelho e suas adjacências.

Bastava o sino da igreja paroquial, logo ao alvorecer, tocar a finados – aquela sonoridade triste, lenta, vibrante, incansável. Alguém essa madrugada entregara a alma ao Criador. Urgia saber quem, e decerto o sacristão, pendurado nas cordas do sino, seria o melhor informador. A partir daí, a desventurada ocorrência tinha viagem de borla nas caminhetas.

Fora Fulano, o filho de Sicrano. Saíra ontem já sobre o tarde da venda de uma Miquinhas qualquer. Já com a sua pinguita, o papo quentinho, o infeliz nem olhou ao atravessar a estrada… Diz que a pancada do carro o atirou cinquenta metros para a frente… Pobre moço, tão novo…

E um suspiro imenso percorria a caminheta. Homem que nela viajasse alçava o chapéu da testa e coçava os cabelos ralos, embaraçado com os poderes da morte. Guardava silêncio. Mas havia sempre duas ou mais vozes mulheris a deixar escapar um – Ai Jesus, meu Deus! - Colos possantes de lavradeiras rijas apertavam em si molhadas de grelos, sacadas de pencas e outras hortaliças. E vindas de seiras calçadas pelos seus joelhos, galinhas peladas, bisonhas, exprimiam-se também – cóooot…

Os sinos aldeãos muito mais contavam: ora porque fosse o S’Manel a quem lhe dera, a noite anterior, o “mal ruim”; ora porque à Zefa, há semanas internada no hospital, pobre cachopa, a doença a levara, fraca do coração, nunca pudera com esforços maiores…

As caminhetas jamais contavam dos baptizados, e raramente dos casamentos. Lambiam-se todas com poucas-vergonhas. E o futebol não era para ali chamado. A política… nem constituía interesse nem era permitida. Coisa de milagre, a dor dos familiares das desgraças, essa que as caminhetas utilizava como combustível – a não ser que, eles próprios, fossem vítimas das réplicas do desastre, objecto de fatalidades pessoais, - também não atingia assinalável cotação. Muito mais valeria a perda de uma mula, a vaca de parto difícil ou a matança do porco.

Acontece, porém, hoje já não ser assim. Mesmo porque às feiras fazem sombra gelada as chamadas “grandes superfícies”. E automóveis, quase toda a gente tem um. As caminhetas subiram de escalão, usam agora os galões de “autocarros” e as suas viagens percorrem Portugal de lés-a-lés. Há modos diversos, mais sofisticados de informação e da sua divulgação. Mas – sempre e sempre – diz-se, e ouvi nas caminhetas, quem morre, quem partiu para a Eternidade, todos os que nos faltam. Somente - em tom diferente, talvez com uma fé maior na Paz em que partem; e uma redobrada atenção no desgosto dos que ficam e choram de saudade. Quero dizer: o mundo, nós todos, acreditamos que a morte não é simplesmente o fim. A esperança, contra o que possa parecer, conquista-nos as forças do quotidiano. A ausência física é amparada, ajudada a suportar, o mais é o Tempo. O Tempo de cada um, as palavras ternas de todos.

 

(Da rúbrica Ouvi nas caminhetas, in Opinião Pública de 17.OUT.2019)

 

 

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