Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

A falta que me faz, o velho Figueira

João-Afonso Machado, 22.12.20

CORREIOS.jpg

Vinha já do tempo dos almocreves, o velho Figueira. Homem feito, conheceu o correio postal, os pioneiros sêlos com a efígie da Senhora Dona Maria II, a nossa Rainha, e foi no tempo daqueloutros, escalados dos cinco centavos aos cinquenta mil reis, cada degrau da sua cor, com o cavalo a galope e o cavaleiro agarrado à corneta, foi nesse tempo já remoto, dizia eu, que o velho Figueira exerceu em pleno a sua actividade de carteiro

(E nunca ele me soube explicar para que servia, então, um sêlo de cinquenta paus. Se não fosse para coleccionadores, havia de ser para despachar contentores vindos do outro lado do mundo.)

Sucede, Salazar, sempre em intrigas, desconfiando de tudo e de todos, deu em implicar com o velho Figueira: despediu-o, pô-lo a vender lotarias para sobreviver. Foi quando lhe deitei a mão, era homem de palavra e sério, sempre sério, no serviço. Da maior eficácia. E passou a ser o meu correio - Ó Figueira, ponha-se lá na mula e leve esta encomenda a tal parte... Quanto é? - E, contas ajustadas, por muitos pinheiros que a tempestade deitasse ao chão, por mais lobos que lhe saíssem ao caminho, o velho Figueira desincumbir-se-ia  certinho da sua missão.

Sempre de fato cinzento e cigarro chupado a afogar-se no canto espumoso da sua boca. A voz roufenha, a goela ávida de uma malga de carrascão. Mas hirto, a prumo, em cima da montada, e muito educado. Assim topasse alguma hesitação no destinatário, logo balanceava a peroração - Vossa Senhoria, solicitou (palavra muito do seu agrado)... - exactamente, como eu explicava, Vossa Senhoria tem perante si o pretendido. E Vossa Senhoria compreende, eu tenho aqui o registo do solicitado, e uma vez registado...

E era que nem ginjas! A encomenda ficava na morada para onde devia ir. Ao dia seguinte, fazíamos contas...

O velho Figueira, o meu distribuidor, como lhe chamava, era um génio comercial. Mas ninguém inventou ainda um remédio contra a cavalgada do tempo. E ele é muito mais rápido do que as alimárias dos almocreves ou mesmo a do velho Figueira. E assim este meu fiel foi transitando para velhíssimo.

Chegou a centenário, quase bicentenário, tinha já inscrição no Antigo Testamento. Mas o Destino cumpriu-se, fatidicamente.

Ficou nas minhas mãos um trabalhito para ele acabar. Pois terei de ser eu, agora. Mesmo porque, embora sem a fibra do velho Figueira, nada me apetece ser incomodado pelo fantasma de Salazar, ou por essa horda que não nos poupa nos tributos, os seus descendentes.

 

1 comentário

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.

Este blog tem comentários moderados.

Este blog optou por gravar os IPs de quem comenta os seus posts.