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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Futilmente"

João-Afonso Machado, 23.11.20

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Sem expressão lançou ao fogo

as rimas que lhe havia escrito

a mão de sempre

sempre a rogo coração.

 

Logo o proscrito de tudo sabendo

partiu,

ninguém mais o viu, salvo o rapazito

- onde vais? – E ele num rumor,

- Há fúteis tais?,

se nem me capacito o amor

seja esta dor ardendo

 

e reacendendo por quem me queimou

como inúteis jornais.

 

 

Cá vamos, ouvindo as ruas

João-Afonso Machado, 21.11.20

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É, a vida anda, apenas sobressaltada pelas estatísticas pandémicas. Com os vivos escondidos a chorar os mortos e tremendo por si próprios. Estranho modo, este, silencioso, oculto, sem alguém a falar de si ou dos seus. A vida, afinal, é recatada e cingida à sua ruazinha. Como, profeticamente, Irene Lisboa a descreveu, posta na sua janela, sozinha, de olho atento nas banalidades do quotidiano.

Já só quase as temos. A conversa dos empregados, o pregão das sardinheiras, a intriga da lojeca, qualquer escandalozinho comentado nos saguões. Era - é - a vida! Porque os hipermercados são, apenas, a manada pasmacenta.

E uma vida crua, como IL a descrevia. Sem moral, sem ajuizamentos, somente sobrevivida hoje, fugindo a ideias sobre amanhã. Humilde, dramática, sensivel. Com muitas notas de um colorido triste, mas rico em palavras. Vagaroso, sem gramáticas esdrúxulas, justamente ouvindo o som das vozes.

Como aqui na rua, íngreme e faladora. 

Também Augusto Gil e dois volumes seus - a obra toda - entre o panfletarismo e a heresia e os sinos do campanário.

(A uma velha capa que S. João deixou/A Virgem Maria ainda a aproveitou.../Escolhendo a parte menos gasta e puída,/Desfaz-lhe as costuras, tira-lhe a medida,/Talha uma roupinha para uma criança/Que era a mais rotinha das da vizinhança...)

São assim os dias correntes. Incessantemente parados, sem vento à vista, velame inútil num Oceânico Pacífico de letras e enredos.

 

A minha personagem fugitiva

João-Afonso Machado, 18.11.20

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Supunha-a definitivamente segura comigo, a minha nova personagem, entregue aos sonhos românticos do Nel da oficina. Já não fugiria, mesmo porque o cetim escuro do vestido retinha a sua elegância mas tolhia-lhe os movimentos. E a nossa terrinha jamais estaria disponível para uma qualquer correria em saltos altos, ou para que tão elevados cuidados cosméticos se descompusessem ou despenteassem.

Não, a minha personagem era já só uma pausada questão com a minha caneta e o meu consabido apreço por mulheres atraentes. Ainda na cama, preguiçosamente, lia o jornal e pensava ao de leve na sua facial macieza, naquele olhar feminino mas tão determinado.

Nisto, a Salette bateu à porta com um excessivo vigor, diria mesmo, despropositado, - era o Nel, lá em baixo, nem parecia ele, pobre moço, a chorar, assunto de vida ou de morte, se eu descia...

Que remédio! - Então Nel, o que é isso?! - Oh Sr. Machado! Ela fugiu! - Fugiu? Que nada, foi embora apenas. De resto, está aqui nas minhas notas, rapaz! - O Sr. Machado faça o favor de ver bem, olhe que ela fugiu. Lá se vai a nossa história!

Levei a mão ao bolso e, na verdade, - népias! Que diabo, nem eu podia prescindir daquela estética, do timbre inimitável da sua voz, tudo iria devagarinho, mas iria. E agora?

O Nel categoricamente insistia eu fosse à cidade. Encontrava-a lá, tão certo como ele se chamar Nel, alguém a vira partir na direcção das praias.

- Mas Nel, tu tens ideia do tamanho da cidade? Achas que eu vou encontrar a nossa agulha nesse palheiro?

Que não, Sr. Machado, que não... Uma menina assim dá-se logo por ela, nem que fosse na China. Alta, o cabelo arruçado, assim vestida, a andar assim...

Resignei-me. Peguei na navalha, desfiz a barba e deixei dois lanhos na cara. Abotoei uma gravata mal-humorada, fui buscar a cigarreira, a carteira, o chapéu...

- Oh, Sr. Machado! Muito, muito obrigado! E quando precisar mudar o óleo do seu Bolcsbaige, qualquer reparação, é só passar na oficina!...

Abalei. Entrei pela Via Norte mas não me aventurei no carro até à Baixa. Andei por Carlos Alberto e os Leões, enfiei a pescoceira nos Cunhas. Entre o mundo académico e os bons armazéns... E depois apanhei o eléctrico, desci os Clérigos, subi Santo António e fui à Batalha: quem sabe, menina culta, não a encontraria nas lides artísticas do Teatro S. João?

Enfim, acabei lanchando na Arcádia, onde diariamente se encontra a nata da sociedade tripeira. Mas nem aí... Desconsoladíssimo chá, o meu, sensaborona torrada. A pardalada chilreava já, ensurdecedoramente, nas árvores sobre a paragem dos eléctricos e eu ali estuporado, de mãos nos bolsos, o Português Suave ao canto da boca e o chapéu na nuca. E agora? Se o Nel perdera o rasto da apaixonada, fora-se-me o aroma, a expressão, os tiques e os gostos, o passado da minha personagem. Como prosseguir os meus dias, como sobreviver a esta calamidade?

 

Gladiador

João-Afonso Machado, 17.11.20

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A bem dizer, a infância era já um árduo treino na arte da luta corpo-a-corpo. Tendo por arena os galinheiros, percebe-se porquê.

A família, numerosa. Os ovos, um alimento fundamental de consumo diário. E aos infantes já de verbo na boca competia ir por eles, assim enfrentando a fúria dos gansos capitolinos.

Imperavam altivos em toda a capoeira. As galinhas, as suas escravas; os galos, um adorno, tal como os inofensivos patos e o pavão; e os perús, a sua tranquilidade natalícia.

Os gansos machos, quais leões, sobretudo ostentavam a sua pose varonil. Mas as gansas silvavam como serpentes e investiam de pescoço raso e bico de crocodilo. Aos cinco ou seis anos de idade combatia-se já pela sobrevivência, de elmo plástico na cabeça, espadas fundidas em aparas de tábuas e escudos de madeira circulares, antigos tampos de retrete.

Por couraça, o bibe. De calções e meias de lã até aos joelhos, servindo de caneleiras. Suportando os sucessivos ataques das gansas, de asas abertas como as dos dragões lança-chamas.

E o escudo ora em cima, ora mais abaixo, a suster esses arremessos, a espada acutilando sem dó nem piedade. Por vezes a benfazeja ajuda do mastim fox terrier, ladrando e dando à cauda, acirrado pelo chinfrim.

Entre mortos e feridos, terminada a lide, os ovos chegavam geralmente intactos ao destino, onde uma Avó das antigas, grata e generosa, prontamente distinguia o gladiador com a palma dos triunfadores e o recompensava, então, com a dádiva da liberdade.

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 15.11.20

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Eis a pesada sombra do fim. O vento soprará sempre, mas as torneiras destruiram as torres. Ficaram miniaturas de Eiffel em quantos quintais, todos os dias menos, eram os velhos moínhos a puxar a água dos poços. Do que sobra deles não constam os ruídos das geringonças e das suas pás de ferro. Gargarejos de manhãs e noites perdidos no tempo e já sem terra...

R.I.P.

 

Dois personagens e uma história improvável.

João-Afonso Machado, 14.11.20

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Que dizer de há sessenta e tal anos atrás e das nossas estradas empedradas e escorregadias, felizmente  ainda pouco transitadas? - Dizer, tão-só, o óbvio, essa paixão eterna vinda à tona na avaria de um entardecer nos fulgores de um então jovem mecânico.

Um herói por um par de horas, a menina, muito bem apessoada, cheia de despacho e conversa, no fim grata e sorridente. E o carro dela, uma arrastadeira quase da sua idade, a devoção do seu saudoso pai - explicou - não, jamais se desfazeria do carro. Mas frequentemente o diabolizava pelas suas pannes.

Fora o que acabara de suceder. Conseguira levá-lo no balanço até à berma, já o sol caía e nem uma cabine telefónica, um poste de electricidade... Nada, nada, salvo um lugarejo qualquer perdido no horizonte

E assim ela se fez à estrada, de vestido cintado, escuro, e os saltos dos sapatos muito desemparelhados com as armadilhas do pavimento. Mas sempre firme, decidida, a carteira debaixo do braço. Nesses quilómetros todos sem vivalma.

O mecanicozito rendeu-se a tanta sofisticação. E às cantilenas dos camones com que a menina entretinha a espera. O reboque fora buscar a arrastadeira, e ela com ele e o chefe da oficina, muito desempoeirada, nunca lhe tremendo a voz em recomendações e indicações.

Se não o tolher o serviço militar, aspira o mecanicozito aos seus estudos na grande cidade. Talvez as suas idades e os seus lugares não sejam muito conciliáveis, mas é lá que ele tem a certeza a reencontrará, então já provido de noções e argumentos, já lido e armado de coisas assim imprescindíveis...

 

Antes, durante e depois

João-Afonso Machado, 12.11.20

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Provavelmente Taine correu muito mundo. Pelo menos foi indo na proa do Positivismo oitocentista, tentando entender cada homem a partir do seu meio ambiente, da sua raça, do momento histórico em que viveu. Não decerto observando dentro do seu gabinete, mas a ele regressando depois, mais informado, mais rico.

E daí a sua exclamação - «c'est bon voyager, mais c'est mieux avoir voyagé»!

Duas décadas volvidas, escrevia Antero de Figueiredo (Jornadas em Portugal) - «A ânsia da partida é um vinho forte, que nos excita; a serenidade do regresso, um leite calmo que nos acalma e nos amodorra gostosamente».

E eu confirmo ser assim. A gente vai. Antes de ir, goza os sonhos, a aventura, os momentos desconhecios e antecipados. E depois investe por aí fora, observa, toma notas,  deslumbra-se, fotografa...; ocasionalmente desilude-se, rosna ter comprado gato por lebre, amaldiçoa noites de vigilia em cadeiras de plástico nos aeroportos.

Mas tudo traz para casa, o bom e o mau, o perto e o distante. Tudo espalha sobre a cama, despejando a mochila, tudo ordena nas prateleiras da sua memória e nos arquivos das suas deduções ou conclusões.

Arruma os mapas, os roteiros, as ideias, os trajectos. Com a caneta, as muitas sensações e visões acumuladas. E sai para o café mais homem do mundo, mais ancião, mais atento, comparando-se, comparando-nos, letrado em reacções e nas suas justificações. Todas as esquinas do seu quotidiano lhe serão diversas.

Valha-nos agora - compartimentados - esse passado, essas muitas imagens que geralmente brotam das t-shirts trazidas de recordação. Tantas são as cores do mundo e aquelas que ainda não apreciámos...

 

O computador, pandemia? O telemóvel?

João-Afonso Machado, 10.11.20

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Não há como não aceitar - as fronteiras fecharam.
As fronteiras são a alma, a família do coração. Há agora uma existência qualquer, parece nem sequer com a dignidade de um bicho, - muito menos ao alcance de uma espingarda caçadeira carregada de chumbo miúdo -  ou um desses bichos miseráveis que não valem o cartucho, é uma existência qualquer só palpável na visão dos microscópios, a fazer de nós, senhores das nossas terras, escravos delas, miseráveis submetidos. E as tropas da governação e da Ciência submetidas ante semelhante intromissão. E nós postos, por determinação pública, fechados em casa.

Ora isto não é regime para barbados minhotos. Ocorrem-me cenas do Passado, El-Rei D. Miguel versus a modernidade; ou a Maria da Fonte de pistolas contra a carga fiscal.

No entanto, é aqui, no nosso Minho, que a ruindade pega com mais força...

Muitas vezes foi necessário, em guerra, saber retirar. A vida fez-se de Astúrias, e a Reconquista é a retoma de um mundo melhor por ser o nosso, sempre o nosso.

Um caso para pensar. O que será necessário? A escopeta, a cana de pesca, roupa pouca, o cão (a rupestricidade do velho amigo), algo com que escrever, algo para ler? Que mais para viver com "vê" grande?

O computador e o telelé? - Não, isso nunca: isso são os fiosinhos onde nos penduramos com o medo... de morrer.

 

Amostra onírica

João-Afonso Machado, 09.11.20

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De surdina, gatinhando, ainda a dia pensava em aclarar. Acocorado, o parceiro canídeo imitava esses passos de militar comando durante horas polares de aproximação. Era uma lagoa famosa pelos seus patos, um paraíso quase inacessível, ninguém ainda lá chegara com resultados palpáveis. Seria ele... - o primeiro!

Por isso, a humidade e depois o encharcanço, as sopas frias de roupa, sempre rastejando a bater o dente. Na obsessão do troféu, da proeza que para os caçadores é o inesquecível almoço, o discurso já a aquentar, as saudações de copo erguido e o bagaço a alumiar as pontas dos pés; até ao taxi prudente e à caminha aconchegadora.

Adiante. Estávamos na emboscada. Abrindo brechas nos juncos, vagamente clareava o nascente. O copincha, obedientíssimo, - uma salva de palmas para o Egas! - outrossim encabeçado pela boina das tropas de elite. Sem negligenciar o focinho enfarruscado.

Eis-nos, então, de repente, perante o bando, ainda dormitando nas águas quietas da lagoa. Mesmo ali, umas dezenas deles, pensou - vou à cartucheira, mudo para chumbo mais fino, em dois tiros matos três ou quatro... - Egas?, a postos para ir buscá-los?

Foi a maré do acordar do sonho. O Egas e a água eram um banho gelado naquele regalo. Algo batia mal, o impossivel caiu-lhe em cima das pernas já arrefecidas. Patos, matara muitos. Até se apiedara deles. Enfim desperto, ocorriam-lhe os seus pescoços esticados em voos de pânico. Prometera a si mesmo não lhes atirar mais. Se calhar precipitadamente, porque o onirísmo perseguia-o, mesmo sendo Egas um citadino não transingindo com o mínimo de conforto necessário... Estremeceu-se num solavanco. Estava num banco do parque da cidade, o lago enorme defronte. Egas abanava a cauda, como se visse o dono regressar à vida. Realmente, os velhotes têm cada uma!

 

"Sereia"

João-Afonso Machado, 06.11.20

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Segredavam no cais temerosos,

partiu sem vento, o arrais

voz de encorajamento,

consigo o leme, o querer,

poderosos.

 

E dizem partiu a nave, vão sós

eles mareantes no nevoeiro

(que os ouviram gemer…)

- um leixão, as correntes, a ondulação,

quem os levará primeiro?

 

Nessa já lonjura

em cuja proa, corpo macio

de madeira escura, a deusa enfrentava a sorte

e o seu busto a dominava,

figura de susto nem um arremedo

num olhar quedo a vida inteira,

 

barca indo cedo, indo prazenteira, cheia de porte,

indo sem velas, sereia a navegava

para a morte.