Supunha-a definitivamente segura comigo, a minha nova personagem, entregue aos sonhos românticos do Nel da oficina. Já não fugiria, mesmo porque o cetim escuro do vestido retinha a sua elegância mas tolhia-lhe os movimentos. E a nossa terrinha jamais estaria disponível para uma qualquer correria em saltos altos, ou para que tão elevados cuidados cosméticos se descompusessem ou despenteassem.
Não, a minha personagem era já só uma pausada questão com a minha caneta e o meu consabido apreço por mulheres atraentes. Ainda na cama, preguiçosamente, lia o jornal e pensava ao de leve na sua facial macieza, naquele olhar feminino mas tão determinado.
Nisto, a Salette bateu à porta com um excessivo vigor, diria mesmo, despropositado, - era o Nel, lá em baixo, nem parecia ele, pobre moço, a chorar, assunto de vida ou de morte, se eu descia...
Que remédio! - Então Nel, o que é isso?! - Oh Sr. Machado! Ela fugiu! - Fugiu? Que nada, foi embora apenas. De resto, está aqui nas minhas notas, rapaz! - O Sr. Machado faça o favor de ver bem, olhe que ela fugiu. Lá se vai a nossa história!
Levei a mão ao bolso e, na verdade, - népias! Que diabo, nem eu podia prescindir daquela estética, do timbre inimitável da sua voz, tudo iria devagarinho, mas iria. E agora?
O Nel categoricamente insistia eu fosse à cidade. Encontrava-a lá, tão certo como ele se chamar Nel, alguém a vira partir na direcção das praias.
- Mas Nel, tu tens ideia do tamanho da cidade? Achas que eu vou encontrar a nossa agulha nesse palheiro?
Que não, Sr. Machado, que não... Uma menina assim dá-se logo por ela, nem que fosse na China. Alta, o cabelo arruçado, assim vestida, a andar assim...
Resignei-me. Peguei na navalha, desfiz a barba e deixei dois lanhos na cara. Abotoei uma gravata mal-humorada, fui buscar a cigarreira, a carteira, o chapéu...
- Oh, Sr. Machado! Muito, muito obrigado! E quando precisar mudar o óleo do seu Bolcsbaige, qualquer reparação, é só passar na oficina!...
Abalei. Entrei pela Via Norte mas não me aventurei no carro até à Baixa. Andei por Carlos Alberto e os Leões, enfiei a pescoceira nos Cunhas. Entre o mundo académico e os bons armazéns... E depois apanhei o eléctrico, desci os Clérigos, subi Santo António e fui à Batalha: quem sabe, menina culta, não a encontraria nas lides artísticas do Teatro S. João?
Enfim, acabei lanchando na Arcádia, onde diariamente se encontra a nata da sociedade tripeira. Mas nem aí... Desconsoladíssimo chá, o meu, sensaborona torrada. A pardalada chilreava já, ensurdecedoramente, nas árvores sobre a paragem dos eléctricos e eu ali estuporado, de mãos nos bolsos, o Português Suave ao canto da boca e o chapéu na nuca. E agora? Se o Nel perdera o rasto da apaixonada, fora-se-me o aroma, a expressão, os tiques e os gostos, o passado da minha personagem. Como prosseguir os meus dias, como sobreviver a esta calamidade?