Agora foi - de caras com a minha personagem
Só amanhã a Salette voltaria a massacrar-me o espírito. Trouxe, conforme lhe pedi, o chá de camomila e já nem me lembro se dei as boas-noites à Dona Mécia e ao Egas. Sei que dormi como um calhau acordado pelas lambidelas deles. Passava do meio-dia. A custo fui reorganizando as ideias, dando-lhes cronologia e sentido. O acento tónico residia no recado do Nel. Com que então, a minha personagem era de Lisboa!!!
A maré corria ruim. Estávamos no S. Miguel, vinham aí as Feiras Grandes; depois as rendas dos caseiros e, de caminho, o Natal e a invernia. Logo a Páscoa, as sementeiras e a colheita. Havia que olhar pelo velho morgadio! Só lá para o Verão...
Entretanto, poetaria. Dar-lhe-ia, à minha personagem, em soneto, cabeça, tronco e membros de deusa olímpica. E fá-la-ia gente de inalcançável acesso, senão a minhotos e outros titãs. E esperaria biblicamente pelo seu advento.
Assim atirei abaixo umas tantas perdizes e risquei no chão, com o meu cajado de marmeleiro, o calendário e as curvas mais lindas do seu ser. Sempre em silêncio, não fosse a malquerença da Arlette ou do Nel me ouvir.
No Verão, finalmente, com o milho já a dourar, anunciei férias. - Oh! Salette, vou uns dias para os Senhores meus primos. Você olhe por isto, entenda-se com o Sousa, está aí, nesse papel, o telefone para qualquer emergência.
E fui. O Primo Zé Aniceto tem uma casa magnífica em Sesimbra e recebe como só ele mais a Prima Zizi. A estadia era sem prazo datado.
Pois numa dessas tardes de praia, não sei o que me deu, levantei-me de um salto. - Primo, estás bem? - Estou, estou, vou só dar uma volta... - Queres companhia? - Não, bem hajas, prefiro ir sozinho...
E toca a marchar, naqueles areais comidos pelas rochas ressoando ao sabor das ondas. A passar os bicos das falésias por penedos que assustavam - Mas que é isto? - pensava eu - no Douro o calor é maior e o tombo também...
De fraguedo em fraguedo cheguei a uma praia vasta, atrás de mim o fantasma de Setúbal, andam agora por lá com umas construções do demo, galinheiros sobrepostos em cima do mar!
Foi quando a vi, a minha personagem. Sem dúvida, juro por Cristo! Tostada do sol, loira, caminhando na orla das águas. (O Nel é um selvagem!) O vestido leve a tapá-la, um olhar indecifrável... Cara a cara comigo e a natural cortesia de um cavalheiro - Boas tardes! - Em resposta, um vago aceno de cabeça. Como descrevê-la?
Oh! Como descrevê-la?! Dêem-me respiro, que eu logo a descrevo.