Salreu
Maré de chuvas e inundações. Fui ao sotão das memórias e trouxe um episódio vivido com um amigo de sempre. Inverosímil, talvez, mas verdadeiro. Ocorrido há anos, numa manhã de narcejas, em Salreu, um braço qualquer da Ria de Aveiro.
O terreno era o que se percebe. Já o meu Pai, tão andado por ali, avisara a perigosidade dessas paragens. Mas como de costume, nunca se liga ao saber dos mais velhos...
Quis Deus, caminhássemos muito perto um do outro. Porque, de súbito, dois passos dados, vimo-nos atolados até ao umbigo. Com as botas que nos chegam cá acima, presas ao cinto, completamente afogadas...
É dificil descrever a sensação. Fique apenas a ideia de que o esforço para libertar uma perna implicava o afundamento da outra - areias movediças!
Sem palavras, percebemos tudo e confrontámos o pânico. Felizmente, eu estava um pouco atrás. O meu parceiro ganhava-me na balança alguns vinte quilos.
E, apoiando-me nele, desapertando as presilhas das botas, lá consegui libertar-me e retroceder - numa espécie de cambalhota para trás - ao ponto firme do ensopado. Depois, foram as palavras de tranquilidade, os cartuchos retirados da arma, e esta usada como um cabo de vassoura, a puxá-lo para fora - sem botas.
Em meias, dentro de água, ainda conseguimos pescar o calçado. Lívidos, continuámos a caçar. Porque estavamos a seco, não tinhamos sequer visto uma narceja...
Custa reconhecê-lo, mas hoje não prosseguiríamos. Coisas da idade.