O Austin Seven
Lembro-me dele na berma da estrada, ali para a Trofa, meses a fio. Muitos, um inverno e outro, e talvez outro ainda. A boleia, o meio de transporte então disponível, nem sempre assegurava o expresso para o Porto e há-de ter sido numa dessas viagens mais demoradas, com paragem na berma até à retoma por outra alma caridosa, que eu soube o preço do ancião Austin Seven, qualquer coisa como 300 contos em moeda nacional, nossa e só nossa. Enfim, todo o dinheiro que eu nunca tivera ou sonhara ter no conjunto dos meus 20 anos de existência, cinco deles sempre à boleia, insisto, o único motor por mim possuido até muito mais tarde.
Por tudo, a regularidade com que me cruzava com o Austin Seven (sim, já depois da Trofa, quem seguisse para sul, talvez rente às terras da Maia) e aquele adeus de olhares fugidios, 300 contos aonde?, se nem conta bancária aberta, nem mealheiro, nem mesada, apenas uns trabalhitos, alguma crónica rabiscada para os jornais...
E um dia o velhinho Austin Seven desapareceu. Nunca descobri como e para onde. Já o esquecera, três décadas volvidas, quando ontem quase me esbarrei de espanto nele - só podia ser ele, diz-me o coração - rodeado de netos e bisnetos, muito engalanado e brilhante. Feliz, lavado de todo o pó que a estrada lhe lançara, definitivamente fora da Idade.
Triunfante sobre a Idade. Vale dizer, sobre todas as fraquezas, mesmo liberto do juizo dos memoriais. Apenas cativo da torrente com que me inundou de gosto e saudades.