O adeus à minha personagem
Enfim, acedi em contar ao Zé Aniceto o que se passara, mas sob a condição de ele me emprestar o Mercedes. E expliquei porquê:
Ali na praia andámos muito em trivialidades, esquecido que foi o demoníaco Governador Civil. - Estas águas - dizia-lhe - são das mais famosas, em todo o Atlântico, na pesca do espadarte; têm até um record, o de o mesmo pescador ter capturado dois exemplares no mesmo dia...
(Eu continuava a assinar a revista Diana, tal como o meu Pai, assim mantendo a colecção inteira, e satisfatoriamente actualizados os meus conhecimentos sobre caça, pesca e hipismo.)
Mas a façanha dos espadartes não constituía novidade para a Elizabeth. A sua atenção ia mais para os búzios que a maré depositava no areal. E arrefecia, o sol precipitava-se no poente... Vai que ela decide bater em retirada?
Foi então, com o denodo do velho antepassado destruidor à machadada da porta da muralha de Santarém, lancei, num ímpeto, como quem ordena "à carga!", o mais temerário convite a que alguma vez me atrevera - Elizabeth, não tarda são horas de ir... Posso convidá-la para jantar? - Why not? - ouvi dela.
(Uai quê?... Mas sua pela expressão, ou troçava de mim ou a ideia agradava-lhe. Creio a ter encarado com um olhar pouco Machado escalabitano, quase suplicante.)
- Vamos, porque não? Contar-lhe-ei o que conheço do Norte. E que tal Sesimbra?
E pronto. Nesta altura do relato já o Zé Aniceto me dava palmadinhas nas costas e passava as chaves do Mercedes para as minhas mãos.
Correu tudo bem, conquanto o Mercedes não causasse qualquer sensação. Havia de ser um Jaguar, ocorreu-me.... Até porque com o carocha, ou remediado ou germanófilo, e ambas as hipóteses não interessavam.
Fomos a uma marisqueira, por sugestão da Elizabeth logo aceite. Uma chatice, uma encravadela: nunca aprendi a descascar camarões e detesto as mãos todas besuntadas, o cheiro, as unhas entranhadas de casquinhas. Mandei vir uma garrafa de branco fresquinha, que a Elizabeth recebeu com um ar gulosíssimo. Torneei o imbróglio dos camarões com uma sapateira. Uma segunda garrafa veio para a mesa. E, perdido por cem, perdido por mil, - apontei o dedo a um robalo maior do que um tubarão, a cabeça e o rabo a fugirem pela travessa fora. Felizmente, era consensual, o ano agrícola será excelente...
Conversámos abundantemente. Contou tinha origens no Minho, também. A Família, aliás, por lá vivera quando o malandro do Salazar entrou a cismar com barragens. A Venda Nova, Salamonde, a Caniçada... em todas houve o douto conselho de um seu parente qualquer, um engenheiro.
Os britânicos são assim. Facilitam no que não é deles. Têm o Loch Ness, não querem saber de diferenças entre o natural e o artificial, daquelas massas disformes de betão entupindo os rios e as montanhas. Com as nossas aldeias a desaparecerem submersas e a Nessie deles jamais emergindo e aparecendo.
Mas o clima do Sul estimulava-a muito mais. Na sua previsão, os seus compatriotas desembarcavam já em Portugal pelo Algarve... - Barragens no Algarve? - Não, que disparate! Sol, mar, turismo, esse é o futuro algarvio...
Tínhamos, portanto, usurpação. Logo pensei em reunir um Batalhão de Voluntários Realistas, de resto, nada de inédito na minha Família, para combater o inimigo.
Mas depois imaginei o Nel e outros milicianos de bacamarte apontado a tropas assim preparadas como a Elizabeth... E eu próprio, - o capitão - de sabre ancestral torcido como uma folha de lata, o revólver esquecido entre os dedos, num grave risco de me aleijar. E calei-me. Deixei os casacas-vermelhas sairem dos botes, e que os seus hoteis desgraçassem a nobre raça lusitana, como outrora as termas romanas a latinizaram. Só não bebi o whisky final, troquei-o por uma bagaceira nossa.
À despedida, um shake-hands. Mas a Elizabeth veio toda sorrateira e deu-me um beijo na cara. (O Reino Unido é, realmente, uma potência nuclear!) E, sempre meiga, prometeu - Quando voltar a passar a sua vilória, vou procurá-lo. Onde o acharei? - Olhe, o melhor é perguntar lá pelo Machado: o Machado patrão da Salette, para que não haja confusões...