Hei, pois, que descrevê-la, a minha personagem. queimadinha do sol, sim, mas com regras. E de um bonito loiro, muito natural. Os olhos azuis mais do que o céu, e eu logo percebi - não seria a D. Filipa de Lencastre, porém era evidente o sangue vindo do outro lado da Mancha. Aliás, a D. Filipa de Lencastre não se movimentaria com aquela descontracção, assim numa camisa emprestada pelo irmão sobre um maillot diminuto, muito poupadinho.
- Isto só cá para o sul - pensei - em Vila do Conde levavas uma rabecada a sério do Baltasar-banheiro, e o Baltasar-banheiro a mais calorosa ovação das senhoras idosas todas, entretidas no seu crochet à sombra da barraca maior.
Mas também ela me encarava, denotando uma certa curiosidade. E eu não segurei os cavalos. - Iria jurar, vi V. Ex.cia no norte, aqui atrasado, à noite, vestida como a noite, num automóvel mais quieto do que a noite...
(Menti descaradamente, é claro, orientado pelos relatos do Nel.)
- Realmente! Tive um azar mecânico, foi já o ano passado, numa viloriazinha minuscula a caminho de Braga. É de lá? Coincidência! Mas faça o favor, esqueça o «V. Ex.cia», o meu nome é Elizabeth...
(Eu não dizia? Elizabeth! Britânica, com o nome da Rainha, felizmente uma estampa, todavia, coitada da Princesa Ana, andarão as duas pela mesma idade.)
- João Afonso, um seu criado, - redargui, muito cioso do meu nome próprio, e não querendo ficar para trás na contagem das sílabas.
Assim do nada se foi parolando. A Elizabeth elogiou muito o meu chapéu, de palha da feira de Barcelos, como os dos rapazitos que vão para o campo olhar pelo gado. Ventava, entre aquelas arribas, mas o elásticozinho no queixo não o deixava levantar voo. Eu deslumbrei-me com o seu atilho de cabedal ao pescoço e, nele, uma pequena estrela-do-mar seca, amarelada. Absolutamente beatnik! Rapariga solta, aventureira, de apetite. Deixando vir de si toda a maresia, um corpo belo como a natureza inteira, suave, de formas escultóricas e descontraídas, esmagando com a sua simplicidade estas senhorecas tão frequentes de lenço e laca no cabelo. E areia na cara, agarrada aos batons e aos cremes. A Elizabeth podia ser Jane e eu o Tarzan, se Edgar Rice Burroughs nos casasse.
Então, e era daqui de baixo, vivia cá? Que sim, a família radicara-se há muito na Capital. - Mas fui apanhá-la quase em de Braga - continuei a mentir-lhe. Pois, fora convidada para uma recepção oferecida pelo Governador Civil, um amigo dos seus.
Calei um palavrão imperdoável porque esse fundibulário, o Governador Civil, é um republicano empedernido que, por graçola tosca, diz sempre celebrar o Natal a 5 de Outubro. Enfim, consegui suster-me e, sem darmos por isso, sentámo-nos os dois numa rocha em conversa amena. Do que falámos é o que eu ando agora a tentar lembrar, como acordado de um sonho, porque o Zé Aniceto, nas costas da prima Zizi, bombardeia-me com perguntas sobre a «inglesa», o grande malandro!