Em mágoas ginasticados
Não faço segredo disso, por todo o mês de Dezembro fecho a casa, pago as minhas dívidas e retiro para um lar. Com o necessário, apenas, para não enregelar nem assar - se chegar ao Verão - e a caneta, o tinteiro, os maços de papel. A escrita envelhece, emperra e, sem consciência das suas limitações, teima, aparece demasiadamente em público, não se cala.
A melhor escrita é um legado sempre, jamais um bate-papo. Ninguém precisa ser lido para escrever. A não ser já no outro mundo, claro, que é onde raramente não somos compreendidos e enaltecidos.
Mal comparadas as coisas, ocorre-me o gamo que eu todos os dias espreitava, contra a vontade do bicho. Mas eram os seus pinchos, o seu bailado entre as cores campestres da Primavera, uma vontade infrene de lhe deitar a mão, como se tudo fosse a macieza de um gato.
Não é. Nem a escrita, nem os saltaricos do gamo, muito menos certas vozes, sobretudo as mais desconfiadas. E o gamo, entretanto, fugiu. Evaporou-se. Alguém me disse o outro dia, viram-no do lado de lá do concelho. Foi outro desgosto: preferiria admirar aquelas pernas agilíssimas pulando nas areias, de rabo alçado, longe e mal agradecido. Com a neblina a enrolá-lo, esfumando corpos e sonhos.
Não por masoquismo, sequer por romantismo. É apenas porque Pedro Homem de Mello tinha razão: «(...) no fundo azul de cada mágoa/Fica a certeza firme da ilusão». Ora aí está.