Afinal não, a minha personagem é de longe!
Tive de me organizar. Principiei numa camisaria em Passos Manuel e noutra lojeca ao lado, por razões óbvias e, novamente no hotel, pedi uma chamada para avisar a Salette da minha ausência. - Oh Sr. Machado! mas então não combinou com os carpinteiros eles virem cá amanhã? - Que venham. Você abre-lhes a porta e leva-os à adega e tudo se resolve, já falámos sobre o serviço. Pague-lhes e depois fazemos contas.
Excelente mulher, a Salette, mas um pouco governanta demais para o meu gosto...
Urgia agora tratar de coisas sérias. Sobretudo, onde me posicionar de tocaia para surpreender a minha personagem. Aceitei ela circulasse, ou residisse, ao cimo de Santa Catarina ou adjacências - na Rua do Bonjardim, talvez na Constituição, em Latino Coelho (quem sabe não era professora no Colégio da Paz?...). Ora, dadas estas coordenadas, o Marquês seria um ponto probabilíssimo de passagem; e no Marquês, como ponto aceitável de vigia, o Café Pereira, amplo e muito envidraçado. Ficaria...fiquei por aí, durante duas, três, quatro tardes alternando o copo de cerveja e o cigarrinho, fazendo as palavras cruzadas de O Primeiro de Janeiro, distraindo-me com as secções dos acidentes de viação e das doenças súbitas e mortais, com o que ia pelos cinemas, algum desporto, a necrologia. Até ao regresso ao hotel e a um frugal jantar... e até ao momento bendito em que o misterioso vestido negro surgiu, atravessando o jardim da praça!
De um salto estava cá fora, no seu encalço. Mas, à medida que me aproximava, ia topando uma cabeleira empastada, a tosca malha da indumentária, com um buraquinho e borboto, a falta da carteira tão distinta, uns sapatos rasos e muito deformados... E, já frente a frente, numa face borbulhenta e num buço maior do que o meu bigode, algo erguido por um timido sorriso de sacristia. Enganara-me!
Foi muito duro. Custou horrores aceitar não era aquela a minha personagem. Reunindo as escassas forças que me restavam, paguei a conta do hotel e, cerrando os dentes, segurei o volante do carro e fiz-me à estrada. Sem mesmo avisar a Salette.
Tenebrosa viagem! Escurecera, entretanto, e cacimbava. A cabeça estalava e parecia ganhar umas hastes que cresciam e arranhavam o tecto do meu carocha. Pensei não chegar, buzinei no terreiro como quem pede socorro! e o primeiro a avistar-me foi o gato da Salette, dá-me a impressão olhando para mim como quem observa um tolo irrecuperável. A dona veio à porta - Sr. Machado, que é feito de si, há dias anda desaparecido! E os meus perdigueiros, uivando lugrubemente no alto das escadas, intuindo a violência dos meus males.
Só perguntei à Salette por um chá de camomila quentinho e pela minha caminha. Nada mais queria. - Pois não, Sr. Machado, é para já. Vou só levar os cães ao quintal... - Não, não, a Dona Mécia e o Egas dormem esta noite no meu quarto!
Ficou danada, a Salette. E indo pelo que lhe pedira, ainda a ouvi no corredor - É verdade, Sr. Machado, apareceu por aí o Nel a informar que recebera um telefonema a agradecerem-lhe a reparação do carro daquela moça de fora. Parece que falaram pouco porque a chamada era cara, vinha de Lisboa...