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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Atenas (I) - Em volta da Acrópole

João-Afonso Machado, 30.10.20

Em boa verdade, a primeira experiência ateniense consistiu na perícia - ou no desvario - dos seus taxistas, numa correria louca até à outra banda da cidade. Urgia visitar o grande santuário, vamos exagerar: a Meca dos gregos.

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Não era absolutamente necessário ir lá acima. A Acrópole surge para a história no período micénico, em finais da Idade do Bronze. Foi crescendo, foi sendo destruída e reconstruída. Conheceu a tirania de Pisístrato, muralhara-na, vieram os persas e desvastaram a pobre coitada, Péricles recompensou-a, oferecendo-lhe o Parténon. Mas chegariam, entretanto, os turcos... e, já no "nosso" século XVII, os genoveses e a sua artilharia, a deitarem tudo ao chão outra vez.

Por isso, havia que não a incomodar, nem cair nas garras de qualquer maçador cicerone. Ficaram algumas fotografias, mais de pormenor, um nada bisbilhoteiras,

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e os deuses, e os seus amores com as sacerdotisas que os serviam, todos lá no seu cantinho. Abaixo celebrava-se uma animação verdadeira, mas ponderada, na Dionisiou Aeropagitou, com muitos turistas e muito cantorio: do nacional, deles, aos Beatles de todo o mundo.

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Uma avenida sorridente, muito educada, onde as pessoas param, ouvem a música, dançam mesmo ao som das suas preferidas. Captando a voz esplêndida de uma cantora-organista a entoar Nina Simone, não me contive de acenar, trautear qualquer coisa da melodia e ir indo, com adeuses de chapéu e algum gingar.

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Eram Zorbas por toda a parte e eu juraria, cruzei-me com o grande, o imenso, Anthony Quinn. Porém, mesmo em tais momentos de emoção, os gatos helénicos dormiam placidamente,

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a igreja de Santa Sofia, ortodoxa, também parecia repousar, observando os quatro cantos do mundo a convergir para o seu terreiro,

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e na trasversal Kariatidon, um pacato ateniense regressava a casa, decerto após mais um dia de trabalho. Santa convivência, a dos deuses e humanos, ali na capital da sabedoria mitológica. Por lá me demorei, magnetizado não sei por que força a prender-me nessa paz, nessa paisagem de gentes e cantares. Até que, descendo a rua e atravesssando a seguinte,

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ainda apanhei o Templo de Zeus, o deus dos deuses, o barbas temível do Olimpo, e o Arco de Adriano,

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o imperador romano que não prescindiu de ali deixar, para a posteridade, a sua marca pessoal. Era, arqueologicamente, o fim do passeio em Atenas. Repousante, como disse, numa mescla de rock e balalaicas, em que Afrodite, muito bem sucedida, acabara seduzindo o iracundo Poseídon...

 

Na Grécia, de comboio de Tessalónica a Atenas

João-Afonso Machado, 28.10.20

Meus caros conterrâneos, fui conhecer a distante Grécia, enquanto a pandemia ainda nos deixa circular no mundo. Uma viagem longínqua, cansativa, até ao extremo desse mitológico País. Estacionei a mochila em Tessalónica (a sua segunda cidade) e, rapidamente, acertei uma deslocação ferroviária, contornando os mares, até à capital Atenas.

Conviria ter presente, no mapa, os caprichosos recortes do território… que eu corri de norte a sul.

Como quer que seja, - fui. Cheguei a Atenas, mais de quatro horas no comboio, através de uma paisagem nada diferenciada, vale dizer, um fundo de montanhas despidas, nuas e secas, sem vivalma, como pano de fundo e, aos pés do viajante, uma estranha planície, por norma sáfara.

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Não que totalmente improdutiva. As máquinas agrícolas de grande porte davam nela em nuvens impenetráveis de poeira, e daí sairiam a ervilhaca, o milho, senão mesmo o algodão.

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Mas tudo – quão longe do nosso Minho ubérrimo! Além de alguns canais acastanhados de rega, ao longo de todo o percurso topei, apenas, um rio como nós os concebemos – largos e corredios de águas.

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E sempre fui congeminando de onde vinha a electricidade para aquelas depauperadas gentes, porque barragens, ali, - tão simples quanto no Sahara… Valer-lhes-á o baixo consumo de um povo que se amontoa, em mais da metade nacional, na histórica Atenas!

E o trem (dificuldade minha, chamar comboio a uma composição assim) prosseguia caminhos. Sem modernidades, apenas andamento. Nessa paisagem conformadamente igual, a planície, a ervilhaca, o milho, o hipotético algodão, ao longe o domínio dos deuses, os cumes carecas, o Olimpo, Zeus reinando entre os seus. Felizmente dormindo, sem disparar raios e coriscos… E o conta-quilómetros sempre a somar.

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De quando em vez, o trânsito por quaisquer urbes anunciadas em amachucados perímetros industriais e muita sucata. Nas estações ferroviárias, o amontoado de compridos atrelados de vagões de carga apodrecendo em ramais sem movimento. Mas que Grécia é esta? – perguntava-me – cheia de ferrugem e abandono, sem museus para tais antiguidades, sem vontade, assim desleixada…

E, no horizonte, o Olimpo (uma Serra da Estrela desarborizada mas levantada como uma árvore no meio do nada) e outros lugares montanhosos, privilégio de descanso dessa imensa genealogia de deuses helénicos. E, cá em baixo, a ervilhaca, o milho, quiçá o algodão dos seus veneradores.

Ora agora ou depois, o comboio parava em qualquer estação. Como em Larisa, cidade de algum peso; como em Tebas – a célebre polis de antes de Cristo, sábia, guerreira, - um quase tacanho apeadeiro. Estacado o comboio, lá ia sobrando o tempo para uma cigarrada fumada cá fora, na gare. Para umas fotografias também. À vista de maquinetas de reparações na ferrovia.

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Nesta Grécia sem parelha, perdida entre os muitos mares da sua história mediterrânica, ficou ainda a miríade de ilhas a que não cheguei. E sobre a estação final – Atenas?

Ora! Arredores à parte, a de V. N. de Famalicão mete-a num bolsinho. Mais não seja em traços arquitectónicos e limpeza do chão.

(Os gregos sabem o que passaram, e do que têm de se levantar. Vão lá cinco anos… Oxalá os portugueses não esqueçam, andaram muito perto de tal desgraça – de que se safaram graças a gente, à boa maneira da Antiguidade grega, agora ostracizada…)

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 28.OUT.2020)

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 26.10.20

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Quantos milhares de pares de olhos não perdi no andar do tempo e dos outonos, comigo espreitando as cores que envelhecem? Tantos quantos esse envelhecimento ordenou um dia - pronto! és tu agora uma folha caduca também: vai!

E os sinos, obedecendo, tocaram ao longe. Num momento que é de todos, na vez de cada um...

 

Thessaloniki

João-Afonso Machado, 25.10.20

Fica-me na alma a imagem do meu filho, sentado à mesa comigo, lendo uma antologia bilingue (português e grego) de Pessoa e tentando, palavra a palavra, decifrar por comparação aqueles inconcebíveis grafismos de lá. Da terra dos gatos,

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onde jantávamos, em tasquinha chã, uma salada excelente e uns nacos de espadarte azul, e os bichanos sem dono vagueavam entre as nossas pernas, de mira na caridade de umas espinhas. Digo eu, isto dos felinos será parte grande do que resta da ocupação otomana  de Tessalónica. Eles miam de lá, ainda, e as gentes também não sabem esconder alguns flagrantes traços fisionómicos. A Ásia é logo adiante, o turco continua à espreita.

(Ao contrário do meu filho, não me demoravam preocupações linguísticas, nem mesmo arqueológicas. Somente... - nunca me aventurara tão longe no Mediterrâneo; e queria sentir todos os aromas do Egeu e regiões por ele banhadas.)

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Essa a primeira atracção de Tessalónica: o baía, o seu porto, o cais envolvente. As cores pesadas de um céu abafado, águas quietas, sucumbidas ao calor, navios de grande calado dormindo. Bem se compreende, o Pensador se vá deixando continuar a pensar, eventualmente espreitando de esguelha a versão feminina do Discóbulo, arrebitadamente concâva,

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esbelta e tão próxima quão distante. Também eu enchi o olho, até porque, como pano de fundo, na mesma direcção, se mantem a Torre Branca: o símbolo máximo da cidade; outrora "Torre de Sangue", mercê das muitas execuções nela levadas a cabo, agora albina, desde que um prisioneiro assim a resolveu pintar. É mais uma recordação das invasões turcas, esta datando dos finais do século XV.

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Não esqueçamos, estamos na segunda cidade grega da actualidade, no norte macedónico, vinda ao mundo na terceira centúria A.C. Mas com Alexandre o Grande sempre zelando por si.

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Porque o passeio não é eterno, importará assinalar a magnificência da Platia Aristotelius, ainda debruçada sobre a baía,

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e continuar a peregrinação para o interior, tropeçando, a cada passo, com ruínas gregas, romanas ou bizantinas. Sirva de exemplo o Arco de Galério, ou Kamara, evocativo da vitória militar sobre os persas,

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a Rotonda de Galério, que foi mausoléu imperial, igreja cristã e hoje é uma mesquita,

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e os restos mortais do imenso Palácio de Galério, muito ao correr da Platia Navarinou,

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onde vamos topar com um leão hercúleo, absolutamente pacífico e dotado de toda a liberdade de quem não é propriedade. Ainda se vive assim na Grécia, e não faltam esplanadas e gente de bem que dê um jeitinho de razoável peso, umas sobras pró jantar. O animal, aliás, prontamente vindo a mim quando o chamei, brincou, só quis festas, nunca perdendo a expressão com que a velha Helade sempre aceitou a Tragédia e o Destino.

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Tessalónica ardeu quase integralmente em 1917. Escapou a Ano Poli, a parte alta da cidade, por onde se chega através de muitas escadinhas e becos sem saída.

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Enfim, o castelo lá no topo, velha fortaleza bizantina, significa sobretudo o apaixonado e plangente encontro da juventude, em noites que pedem meças às conimbricenses junto à Sé.

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Porque estamos numa cidade universitária, consequentemente vivida por camadas etárias ainda frescas. Rapaziada que gosta de se divertir, oriunda dos quatro cantos do mundo, uma multidão, em suma. Com anos e anos pela frente, muitos mais do que esta terceira epístola sobre os tessalonicenses... Não escrita por S. Paulo, mas pela minha caneta.

 

Revisitando o Vavá

João-Afonso Machado, 23.10.20

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Quatro certinhas, fatais, décadas em cima dos seus tempos académicos, esquecidos ele e ela, em partes quase opostas do mundo, como nos Amigos de Alex determinaram o reencontro em poiso de saudades e memórias lacrimosas.

(- Está combinado, Mena? - Firme, Tozé, serei pontualíssima!)

Assim decorreu o pequeno-almoço. Com ritos e gostinhos dos bons velhos anos da Faculdade, frescos como as manhãs de então e apreciados, não por quem fosse para as aulas, mas por quem viesse de uma acesa noite inteira de namoro, em apartamento emprestado.

(- Oh Mena, lembras-te quando nós... - Não fales nisso Tozé, passou muito tempo...)

Nascera com eles aquele pedaço da cidade a desbravar quintas e arredores. Onde o Vavá fora dos primeiros abrigos surgentes, rapidamente um amparo dos casalinhos clandestinos, políticos oposicionistas, gente das Artes e outros dormidores diúrnos.

Os paineis de azulejo assinados por Menês (1958) ajudavam ao ambiente. A uma marginalidade fina, requintada, toda moderna, conspirando contra os costumes de antanho e contra Salazar. Mas sempre sem prescindir do bom serviço de mesa.

(- E aqueles pregos tenrinhos, nós esfomeados e exaustos depois de cada maratona de namoro, Mena? - Tozé, por favor, já te pedi... Eu casei, sou avó...)

Gorduchitos, pesadotes, devoravam-nos recordações dessas tão gulosas correrias termopolianas. O pudor, geralmente, é uma auto-defesa, uma atitude de prudência... Por isso, avançaram para a fase seguinte da permanência diária naquele seu santuário estudantil - as tardes de política e troça aos betinhos. Tudo decorria muito em volta dos papeis dos jornais, as notícias tinham outro sabor, muito mais prolongado no palato, - as novidades eram para a rapaziada o que o vinho, bem apalpado na boca, é para os enólogos actuais. Santa cadência de informação a desses recuados idos, possibilitando o debate, a discussão, a ânsia de amanhã, nada como agora, em que as "de última hora" parecem coelhos a saltar dos telemóveis nos bolsos das calças! Não, o Vavá pós-almoço de há quarenta anos era o restolhar ávido das páginas dos jornais, a impaciente espera dos vespertinos. E uma ou outra zanga, calhando...

(- Mena, e daquela vez que os reaças se armaram em fortes, eram muitos, o patrão até chamou a polícia de choque? - Que vergonha, Tozé! Ai de mim!, se os meus Pais tivessem sabido...)

Houve, de seguida, libelo e contraditório acerca dos colegas, os seus nomes, a sua fortuna, o seu paradeiro. Falavam dos camaradas e das noites de paixão que se iniciavam no Vavá, prolongando-se nos ditos improvisos de amor, Bairro de Alvalade fora.

(- Já te disse, Tozé, não sejas insistente, a conversa incomoda-me! Olha... tudo em volta está tão mudado!)

Estas peregrinações, não raro, dão em desilusões assim. O Vavá perdeu algures as suas sólidas mesas de então, os funcionários de camisa branca foram substituídos por jovens meninas - solícitas, sem dúvida, mas não é a mesma coisa, de todo não é. E aparenta mais ser uma padaria do que uma pastelaria snack-bar. Decerto porque - principalmente - perdeu as muito suas conversas e os intervenientes nas mesmas. Quais fossem elas e eles... - ai de nós!, se os nossos descendentes viessem a saber!...

Na falta dos jornais folheados, mastigados e incendiários, no burguesismo como o de hoje, bacoco e sem encobrimento político, - do Vavá... ficaram apenas, é verdade, os azulejos de Menês. 

 

Amsterdam, onze anos depois

João-Afonso Machado, 20.10.20

O paradoxo - detectamo-lo ainda o avião vai nas alturas: para não submergir em águas oceânicas, os holandeses deixaram-se infiltrar por elas. Na paisagem rural, é como se os talhões alternassem, ora sólidos, ora líquidos, em toda esse país de tulipas. Mas a cidade não destoa. Amsterdam são canais navegáveis e ruas para ciclistas.

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Onze anos depois voltei a apear na Centraal Station, de si mesma um monumento...

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... e a vislumbrar os gigantescos cabides-garagens de bicicletas, para qualquer incauto um modesto ferro-velho, não a não despesa de todos, e cada um dos cidadãos, um protesto antigo contra a poluição

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porque, realmente, importa inventar, e nisso a arquitectura holandesa parece ter perdido a cabeça e desenbestado em invenções múltiplas e avant-guard, conquanto dançando na perfeição a música dos tempos com a antiguidade.

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Sirvam de exemplo, logo de chofre, o Eye Filmmuseum e a Twenty A'dam Teren, na outra margem do Het Ij. Mas, nesse capítulo de cidade tão silenciosa - ouvem-se zunidos, são movimentos pedalados, veículos eléctricos, - um nada além descobrem-se outros hinos, de tantos destacando o Nemo Sciense Museum, verde das algas, inconfundível, entre os dias escuros de uma cidade assim distante dos dias latinos.

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Ou - sempre na bitola dos edifícios postos entre o classissismo - o Movenpick Hotel, a cair pingue nas águas da Oosterdock...

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Não obstante, Amsterdam guarda um lugar de eleição para os seus monumentos de outras eras. Os ditos clássicos, a maior parte deles de matriz religiosa, valem por si, quero dizer, os holandeses, não sendo já um povo de crenças profundas, nem de transcendências arreigadas, acendem-se votivamente ao Passado.

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Por isso as torres sineiras, de venerandas igrejas, permanecem lançando as suas sombras nos canais onde o turismo circula em barcos mudos, quase roçando outros, habitados e marginados de casario único.

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Um espanto! Uma maravilha, a descoberta de prédios, da mais perfeita geometria, pregados nas águas em absoluta verticalidade, gritando bem alto -  carecemos de sol, oferecemos alternativas: o conforto (vou adivinhando...), a imagem, o remanso...

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... e as melhores avenidas de comércio e lazer, como Damrack e um lote incomensurável delas. Amsterdam é proprietária de páginas e páginas de Humanidade medida por todos os ângulos das suas artérias. A História da cidade pertence sobretudo à da velha Europa e de todas as suas convulsões. Uma enciclopédia para prateleiras sem fim, repartidas pelos bocadinhos da imaginação de cada qual.

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Até dos sabedores da Fauna. Falar em gaivotas seria irrisório. Acrescentar galeirões, mergulhões, gaivinas... ainda assim de somenos. Entre a multidão, uma gralha cinzenta dando os seus iniciais voos é uma pista segura para demonstrar como, naquele mundo, tudo não pode ser imprevisivel.

 

Em demanda dos mitos

João-Afonso Machado, 15.10.20

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Parto em caravela alada e barulhenta. Numa qualquer passarola fumegante, enferrujada, oscilante, mas parto enquanto é tempo. Aconselham-me os áugures e garantem: vá-se embora, mas vá já, enquanto ainda os ventos são propícios.

Parto para destino impreciso, pressupondo ultrapassar as fardas fronteiriças: é tão certo partir quanto incerto chegar. Há, realmente, qualquer coisa de agridoce nesta clandestina debandada...

Mas a meteorologia - leram os áugures nas entranhas dos peixes - não é catastrófica e a mitologia sopra de popa. Oiço as peripécias mediterrânicas marchadas de cidade em cidade ou remadas de ilha para ilha, e trago já na cabeça o capacete dos aqueus e todo o bronze micénico. Para começar pelo princípio... E, no olfacto, a quietude do Egeu e do Mar Jónico, como qualquer cão pisteiro no seu encalço.

Vou. Numa madrugada dessas, acobertado pela neblina, em busca de penedias e do fantástico. De um naco de queijo e um bom copo de vinho, tinto espesso quase licoroso. Assumidamente - a fugir de um mundo de estatísticas diárias com o qual os deuses do Olimpo se zangaram mesmo e já o azaragatoam.

 

"Praceta do medo, s/nº"

João-Afonso Machado, 12.10.20

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Porque em ti, praceta, os olhos circundam

tão em medo bancos quietos onde os idosos

(porquê?!)

se afastam temerosos?

 

Serão janelas ou fantasmas, praceta?,

em teu redor há segredo nelas,

nessas covas em que pasmas na sala

a tarde inteira, praceta, jurando sovas

e um terror de bengala.

 

Porque não colhes, praceta, uma flor?

E te deixas adormecer…

Dorme, dorme, praceta,

esquece a ampulheta,

 

os passantes querem viver.

 

 

Um grande pescador

João-Afonso Machado, 11.10.20

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Vai lá quase meio século, com um brinquedo dele - uma cana e um carreto, estojo completo com outras artimanhas, - oferecido em aniversário recente, demos connosco nas Furnas da Ericeira. Eu, mais velho um pedaço, e já acanaviado, tomei o controlo das operações. Nesse fim de tarde, o anzol engatou uma taínha, bicho pequeno, ainda assim festejado como uma proeza.

Correram muitos anos e habitei a sua casa. Não alterei o rumo da brincadeira mas, quando dei conta, o meu Primo fazia da pesca o seu modo de vida. Quero dizer, vivia pescando, horas nocturnas, inexplicáveis,  e dormia sobre um tecto recoberto de artefactos, como se o forrasse um canavial para todas as modalidades respectivas.

Fosse no mar, fosse nos rios: sobrava-lhe ciência. Assim o meu entretém perdeu peso ante a sagacidade do meu Primo, tão mais novo, tão mais conhecedor da arte.

E eu já só ouvia, ouvia... Às vezes - porque era difícil - aprendia.

Em férias organizámos caldeiradas para a Família. Mas nunca mais pescámos juntos. O meu Primo fazia madrugadas a bordo de embarcações ignotas; comigo dois filhos menores, que me impossibilitavam a noitada... Daí as nossas tantas conversas feitas de relatos, vivências de um lado, sonhos do outro. Acrescentados pelos sucessos nos pesqueiros do litoral Oeste, ali tão perto, para mim tão distantes...

Mais a castigar, as suas incursões nortenhas, em que as trutas que o Primo empalmava pareciam bichos meus, a gargalharem do meu primarismo, bichos que o Primo me roubava...

A história prosseguiu com achigãs, lúcios, barbos portentosos, todos eles ludibriados pelo saber do Primo, inveja minha, ali a dois passos desses mesmos resultados...

Sucedeu... a partida do Primo. Desse meu querido Primo! Muito mais velho do que eu apenas em sabedoria piscatória. E, penso cá comigo, ele nada mais tinha a aprender e a ensinar, e por isso a sua hora final. Meu Primo - um enorme abraço de quem crê:  ainda hei muito de saber, ora hoje, ora um dia qualquer em que nos reencontremos.

No Paraíso, isso está escrito, as trutas nascem logo com mais de quilo e meio!...

 

Apanhados (XXIX)

João-Afonso Machado, 10.10.20

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Estava paralisado no trânsito, impacientemente, com redobradas razões. Um Mercedes 350SL não nasceu para tais contrariedades. Ronronava do motor, um som digno de ser ouvido, eco dos últimos Anos 70, quando não havia empecilhos assim e a máquina acelerava, rolava e prestava uma nota excelente da sua carburação, da sua potência.

Talvez então não dessemos conta dele... Ou seria apenas uma miragem? Não me lembro. Já o conhecia dos estacionamentos, mudo e quedo. Topei-o agora nesse tal resmungar de animal entalado, com todos os argumentos do lado dele. Um Mercedes destes é para apreciar espicaçando os seus cavalos, mais do que para abrir a boca ante os seus magníficos acabamentos interiores.

 

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