"Minhotos arcoenses a salvar em Lisboa"
Quem se lembra do Tollan há de contar não menos de trinta anos. Muito rapidamente, - o Tollan era um porta-contentores britânico que, no Tejo, precisamente defronte ao Terreiro do Paço, colidiu em 1980 com um navio sueco. Virou-se ao contrário, o “bicho” era enorme, maior do que a maior baleia, e quatro tripulantes morreram no acidente. Ano após ano, de barriga para o ar, bizarreou a melhor fotografia da nossa Capital, sem que alguém soubesse tirá-lo dessa flutuação de cadáver. (E, muito provavelmente, as autoridades esperando alguma tempestade o levasse rio abaixo até às profundezas do oceano, contando não atropelasse, na travessia, qualquer cacilheiro ou outra embarcação…)
Em finais de 1983, com a sempre necessária ajuda germânica, o casco do Tollan foi finalmente removido. Criara, entretanto uma imensa geração anedotária: até em Vila do Conde a vanguardista arquitectura (Siza Vieira) do BPI, valeu ao edifício o epíteto de Tollan. Este é um exemplo, além do qual encontrei, recentemente, para as bandas de Alfama, um pequeno restaurante, o Tolan, de seu nome.
Eu não gosto de comer em casas complicadas.
Logo intui, não seria o caso do Tolan. Além do resto, uma efeméride, a nostalgia dos meus vinte anos… Assim determinei: almoçaria – almoçaríamos – nesse velho poiso. Umas excelentes pataniscas de bacalhau, adiantemos já. Com farinha, sim, mas com o gadídeo a dar-lhes corpo. (Vão saber o que é um “gadídeo”, espécie ictiológica com pera…) E com cebola quanto bastou e um senhor arroz a fazer-lhe companhia. Sem maçadores a palrar em redor. Alfama dormia a sesta. A invasão turística em trégua, rendendo preito ao meu bem-estar. Gosto de bons e diversos sabores, mesa sem salamaleques, preços que não me esganem o orçamento… Não preciso de restaurantes elitistas para saber estar como deve ser… E dou preferência aos de pinga não mais cara do que o prato, com pouca gente e pouco barulho, lugares simples mas acolhedores..
Somente a D. Glória, a patroa, sempre respeitosa e prestável, não deixava o sol iluminar-lhe o semblante. E havia nela uns restos de sotaque que não me enganaram. Já quase na sobremesa, sempre lhe fui perguntando – A senhora não é lisboeta, pois não?
Não, não era. Era – confirmando a minha ideia – minhota, dos Arcos de Valdevez. Iam lá quase quarenta anos… Abrira o restaurante com o marido, precocemente levado por um AVC, agora a crise, o negócio indo para o fundo, onde estavam os germânicos e os britânicos?... E as lágrimas a correrem-lhe nas faces…
- Oh! D. Glória, venha aqui! Fale connosco! Isso é nada! – A minha Amiga, estarrecida, multiplicava-se em ditos de encorajamento, algo que não vai muito comigo. Porque lendo (creio que o P. Varillon), soube perceber que o menosprezo do sofrimento é a pior ofensa que fazer se possa a um sofredor. Portanto, quando clamei, em voz alta, - D. Glória! – foi mesmo para a trazer à mesa e confirmar com ela, a vida é como o mais manhoso dos bodes.
Falámos muito, chegámos até a equacionar o seu regresso aos Arcos. De qualquer modo, futuros almoços ou jantares em Lisboa seriam prometidamente no Tolan, mesmo – ou sobretudo – com grupos maiores, gente em peso a encher-lhe a casa (e os meus desgraçados ouvidos…).
A D. Glória sentou-se connosco, desabafou, a minha Amiga foi mimoseada com um “tu” e com o tratamento de “amor”, “ó filha”, “minha flor”, and so on. Eu não, decerto por contenção imposta pela minha branca cabeleira, por qualquer atitude paternalista de que tivesse abusado…
Terminámos o almoço com uma excelente ginjinha, oferta da D. Glória. Não tarda regresso a Lisboa, e à sua porta não deixarei de bater. Os meus conterrâneos, indo à Capital, façam o mesmo. Por todas as razões imediatas e pelo nosso sangue minhoto!
Procurem a localização do Tolan no FB, que ele tem página nessa enciclopédia.
(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 09.SET.2020)