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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Minhotos arcoenses a salvar em Lisboa"

João-Afonso Machado, 09.09.20

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Quem se lembra do Tollan há de contar não menos de trinta anos. Muito rapidamente, - o Tollan era um porta-contentores britânico que, no Tejo, precisamente defronte ao Terreiro do Paço, colidiu em 1980 com um navio sueco. Virou-se ao contrário, o “bicho” era enorme, maior do que a maior baleia, e quatro tripulantes morreram no acidente. Ano após ano, de barriga para o ar, bizarreou a melhor fotografia da nossa Capital, sem que alguém soubesse tirá-lo dessa flutuação de cadáver. (E, muito provavelmente, as autoridades esperando alguma tempestade o levasse rio abaixo até às profundezas do oceano, contando não atropelasse, na travessia, qualquer cacilheiro ou outra embarcação…)

Em finais de 1983, com a sempre necessária ajuda germânica, o casco do Tollan foi finalmente removido. Criara, entretanto uma imensa geração anedotária: até em Vila do Conde a vanguardista arquitectura (Siza Vieira) do BPI, valeu ao edifício o epíteto de Tollan. Este é um exemplo, além do qual encontrei, recentemente, para as bandas de Alfama, um pequeno restaurante, o Tolan, de seu nome.

Eu não gosto de comer em casas complicadas.

Logo intui, não seria o caso do Tolan. Além do resto, uma efeméride, a nostalgia dos meus vinte anos… Assim determinei: almoçaria – almoçaríamos – nesse velho poiso. Umas excelentes pataniscas de bacalhau, adiantemos já. Com farinha, sim, mas com o gadídeo a dar-lhes corpo. (Vão saber o que é um “gadídeo”, espécie ictiológica com pera…) E com cebola quanto bastou e um senhor arroz a fazer-lhe companhia. Sem maçadores a palrar em redor. Alfama dormia a sesta. A invasão turística em trégua, rendendo preito ao meu bem-estar. Gosto de bons e diversos sabores, mesa sem salamaleques, preços que não me esganem o orçamento… Não preciso de restaurantes elitistas para saber estar como deve ser… E dou preferência aos de pinga não mais cara do que o prato, com pouca gente e pouco barulho, lugares simples mas acolhedores..

Somente a D. Glória, a patroa, sempre respeitosa e prestável, não deixava o sol iluminar-lhe o semblante. E havia nela uns restos de sotaque que não me enganaram. Já quase na sobremesa, sempre lhe fui perguntando – A senhora não é lisboeta, pois não?

Não, não era. Era – confirmando a minha ideia – minhota, dos Arcos de Valdevez. Iam lá quase quarenta anos… Abrira o restaurante com o marido, precocemente levado por um AVC, agora a crise, o negócio indo para o fundo, onde estavam os germânicos e os britânicos?... E as lágrimas a correrem-lhe nas faces…

- Oh! D. Glória, venha aqui! Fale connosco! Isso é nada! – A minha Amiga, estarrecida, multiplicava-se em ditos de encorajamento, algo que não vai muito comigo. Porque lendo (creio que o P. Varillon), soube perceber que o menosprezo do sofrimento é a pior ofensa que fazer se possa a um sofredor. Portanto, quando clamei, em voz alta, - D. Glória! – foi mesmo para a trazer à mesa e confirmar com ela, a vida é como o mais manhoso dos bodes.

Falámos muito, chegámos até a equacionar o seu regresso aos Arcos. De qualquer modo, futuros almoços ou jantares em Lisboa seriam prometidamente no Tolan, mesmo – ou sobretudo – com grupos maiores, gente em peso a encher-lhe a casa (e os meus desgraçados ouvidos…).

A D. Glória sentou-se connosco, desabafou, a minha Amiga foi mimoseada com um “tu” e com o tratamento de “amor”, “ó filha”, “minha flor”, and so on. Eu não, decerto por contenção imposta pela minha branca cabeleira, por qualquer atitude paternalista de que tivesse abusado…

Terminámos o almoço com uma excelente ginjinha, oferta da D. Glória. Não tarda regresso a Lisboa, e à sua porta não deixarei de bater. Os meus conterrâneos, indo à Capital, façam o mesmo. Por todas as razões imediatas e pelo nosso sangue minhoto!

Procurem a localização do Tolan no FB, que ele tem página nessa enciclopédia.

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 09.SET.2020)

 

 

"Portrait"

João-Afonso Machado, 06.09.20

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Meu retrato do tempo deitado fora,

ferro cravado

em sangue já descolorido.

 

(Meigas feições, branco vestido

de jardins de outrora –

tudo foi embora.)

 

Mas o retrato guardo-o comigo,

em  dores de saudade mora

na realidade de tanto perdido

 

onde o sorriso é o abrigo,

lágrimas de quem não chora.

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 04.09.20

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O vento assobia pelos corredores das casas. Não há como evitar irmos na corrente de ar - irmos sorvidos para lá dos montes. Onde as paredes do mundo começam a amarelecer, numa actividade insana das formigas carregando e descarregando para o inverno. Já a cigarra esmorece na sua euforia. É Setembro, a vindima sem fim.

 

Memória vilacondense (avulsa)

João-Afonso Machado, 03.09.20

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Eram as célebres manhãs nevoentas de praia vazia e a Bento de Freitas uma orquestra de batentes das portas, tantas as peixeiras de canastra à cabeça. Seria, provavelmente, mais um dia de almoço à mesa e por isso surgiam elas, com peixe variado, acabadinho de chegar da Póvoa. Aquilo havia de ser compaixão do S. Pedro pelas peixeiras das Caxinas, o nevoeiro era o seu maior trunfo para fazerem pela vida. 

Os senhores - toda uma geração de que já só restam saudades - confrontados com a intempérie, vestiam a sua calça beije, o pull-over de marca, não raro o plastron e, sozinhos ou aos pares, tomavam o rumo da vila.

Atravessavam o jardim imenso, com o seu coreto, os muitos canteiros, e embrenhavam-se em território indígena: passavam o cinema, o Bom Doce e só paravam na outra esquina, no Café Bom Pastor.

Estabelecimento antigo, respeitável, sóbrio. Frente à entrada, o balcão enorme e as férreas mesas redondas de tampo transparente.

Vão lá quarenta nos!... Onde irá, também, o Sr. Bompastor, uma simpatia e um homem da maior utilidade, sempre prestável, aliás um entendido em televisores avariados?

Os senhores - gentlemen da cabeça aos pés - compravam o jornal, tomavam o seu café e produziam uma tranquila manhã de cavaqueira entre eles. Volta e meia, espreitando pelas enormes vidraças do Café Bom Pastor, sempre não esqueciam um eventual azular do céu, prás bandas da praia...

Senão, era mais um cigarro fumado sem restrições, a encher de patine as paredes e o tecto do Bom Pastor. Este assim amarelecia sossegadamente, bem conversado, o seu nome, em letras fundidas e expostas à salinidade do ar, curvando na frontaria a esquina toda. Como agora em nada se topam quaisquer semelhanças com esse velho Bom Pastor de resignadas manhãs e um ou outro rocambolesco episódio. Lembro o de um cavalheiro da vila, decerto confundido, dirigindo-se a um dos veraneantes a cumprimentá-lo efusivamente:

- Então como está???

E o da praia, engasgado no bolo da arroz, surpreendido e balbuciante:

- Estupefacto!

 

Grândola

João-Afonso Machado, 01.09.20

Há uma avenida quase sem princípio nem fim. Afinal, como se não estivessemos no Alentejo... Pensando melhor, um eterno bater de botas no asfalto, rude e militar, determinado: ouvem-se sons - Grândola Vila morena/Terra da fraternidade/O povo é quem mais ordena/ Dentro de ti ó cidade...

E esse ritmo assustador, a revolução em marcha, prossegue avenida fora. Será de temer o pior, andamos nos ecos da tomada da Bastilha, a "fraternidade" é um alçapão...

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A apresentação do filme aterroriza. A pelicula tranquiliza. O bater das botas esboroa-se. Grândola, afinal, é uma terra de bem receber os forasteiros. Em cada esquina um amigo... A começar pela terceira idade.

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A sombra, uma nesga de ar corrido. Uma tarde conversada. Para o Inverno, essa macaca, a Revolução! Até lá, amplas liberdades de cumprimentos a quem chega, muita simpatia dos indígenas. E a curiosidade, que é o chouriço dos anfitreões de pão aberto à espera.

Grândola transborda de gente receptiva!

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Entretém-se nos seus clubes, nos seus bailaricos. Lugares sagrados de conspirações de outrora. Santuários, digamos assim. É o mal de Grândola - impossível dissociá-la da política. E das cores garridas dessa política!

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Em algum desacerto com as coisas do Senhor, há Cultura. Há de haver muito mais, sem dúvida. No vazio das ruas vamos descobrindo actualidades, Grândola tem o ouvido apertado ao transistor, escuta o relato, é sua a primeira página desportiva

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e as notícias chegam frescas, aí temos a equipa sportinguista para a próxima época, além do óleo emérito de Varandas e de lances capitais futebolados do futuro. Grândola sonhadora, à sombra de uma azinheira/que já não sabia a idade

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Afinal, Grândola é a despedida. Para norte e para o sul. Para o almejado Algarve de uma simpática inglesa. Para Lisboa, destino dos que regressam de férias. A estação ferroviária sem vivalma, apenas uma voz monocórdica no altifalante, anunciando os próximos comboios.... Grândola? - dada agora a fantasmagorias???

 

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