Memória vilacondense (avulsa)
Eram as célebres manhãs nevoentas de praia vazia e a Bento de Freitas uma orquestra de batentes das portas, tantas as peixeiras de canastra à cabeça. Seria, provavelmente, mais um dia de almoço à mesa e por isso surgiam elas, com peixe variado, acabadinho de chegar da Póvoa. Aquilo havia de ser compaixão do S. Pedro pelas peixeiras das Caxinas, o nevoeiro era o seu maior trunfo para fazerem pela vida.
Os senhores - toda uma geração de que já só restam saudades - confrontados com a intempérie, vestiam a sua calça beije, o pull-over de marca, não raro o plastron e, sozinhos ou aos pares, tomavam o rumo da vila.
Atravessavam o jardim imenso, com o seu coreto, os muitos canteiros, e embrenhavam-se em território indígena: passavam o cinema, o Bom Doce e só paravam na outra esquina, no Café Bom Pastor.
Estabelecimento antigo, respeitável, sóbrio. Frente à entrada, o balcão enorme e as férreas mesas redondas de tampo transparente.
Vão lá quarenta nos!... Onde irá, também, o Sr. Bompastor, uma simpatia e um homem da maior utilidade, sempre prestável, aliás um entendido em televisores avariados?
Os senhores - gentlemen da cabeça aos pés - compravam o jornal, tomavam o seu café e produziam uma tranquila manhã de cavaqueira entre eles. Volta e meia, espreitando pelas enormes vidraças do Café Bom Pastor, sempre não esqueciam um eventual azular do céu, prás bandas da praia...
Senão, era mais um cigarro fumado sem restrições, a encher de patine as paredes e o tecto do Bom Pastor. Este assim amarelecia sossegadamente, bem conversado, o seu nome, em letras fundidas e expostas à salinidade do ar, curvando na frontaria a esquina toda. Como agora em nada se topam quaisquer semelhanças com esse velho Bom Pastor de resignadas manhãs e um ou outro rocambolesco episódio. Lembro o de um cavalheiro da vila, decerto confundido, dirigindo-se a um dos veraneantes a cumprimentá-lo efusivamente:
- Então como está???
E o da praia, engasgado no bolo da arroz, surpreendido e balbuciante:
- Estupefacto!