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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"No Dia Mundial do Alzheimer"

João-Afonso Machado, 30.09.20

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Muito me apraz aqui invocar o Dia Mundial da Pessoa com Doença de Alzheimer 2020. Conforme ele foi vivido entre nós, cidadãos famalicenses.

Falou mais alto, foi de rasgos, a Associação Casa da Memória Viva de V. N. de Famalicão, com quem me orgulho de colaborar; mediante duas iniciativas que levou a cabo: a primeira, no passado dia 21, uma sessão no auditório da União das Freguesias de V. N. de Famalicão e Calendário tendo por mote a apresentação do programa Estou Aqui Adultos. No fundo, um meio organizado para a ajuda de doentes afectados nas suas faculdades mentais por qualquer tipo de demência, e desprovido de teias burocráticas, a todos acessível e muito bem explicado em “pagelas” – panfletos – nas quais a nossa Polícia de Segurança Pública teve um papel maior.

Assim a movimentação seguinte, de sábado, 26 de Setembro, decorreu em parceria com a PSP. Tratou-se de distribuir à população – nessa manhã agitada de mercado – nas ruas do centro da cidade, bolsas porta-máscaras protectoras do Covid. Gratuitamente, é claro, como produto de uma parceria com as empresas Batist Medical, FVD, NAC Contabilidades E NPrint. Em cada abordagem, a entrega do equipamento e a prestação das necessárias informações para o utilizar.

A ACMV dispôs, como referi, do auxílio das forças de segurança pública. Neste quadro será sempre de realçar a extraordinária proximidade, sem dúvida vinda de trás, dos elementos policiais – in casu o Chefe Silva e o Agente Braga – e dos muitos cidadãos contactados, que todos se pareciam conhecer da mais sã convivência no dia-a-dia. Parceiros de sempre… Valeu a simpatia, o diálogo franco com quem passava – gente habituada, decerto, a políticos, burlões, vendilhões e outros pedinchas – para, às primeiras palavras, os destinatários se interessassem sem reservas acerca do que lhes era oferecido ruas abaixo, e conversassem e brincassem ou falassem dos seus receios.

O lema dessa manhã foi oportunamente apelidado Famalicidade é… pensar inclusivo e agir solidário. Há certos neologismos que caem mesmo bem! Famalicidade!... - a justaposição da urbe e da qualidade que todos queremos para ela. Do Largo Tinoco de Sousa até à Praça D. Maria II, muito foi comentado e distribuído. O concelho vive dias difíceis de pandemia, não como não deixar o nosso contributo. Mesmo porque, agora e sempre, saber tratar de nós é o caminho mais seguro para a protecção dos indefesos nossos familiares, vivendo lá em casa ou, até, em locais de apoio onde se resguardem.

Em suma, uma manhã de sábado assaz movimentada. E mais um passo que a ACMM deu, conforme os seus objectivos. Acreditem os famalicenses, mesmo bem ciente de quantas dificuldades se lhe atravessam ao caminho, a ACMM está cá para prestar a sua desinteressada ajuda. Digo-o com a independência de quem nela não detém qualquer representatividade ou poderes decisórios – sendo certo, abracei com os fundadores este projecto; e, acredito, com o empenho que vejo ser demonstrado, no devido tempo todos nos reuniremos em seu torno, como um inquestionável lugar de salvaguarda dos necessitados.

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 30.SET.2020)

 

 

Romagem a um túmulo

João-Afonso Machado, 29.09.20

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Assim é a Eternidade dos mortos. Entre vidraças escaqueiradas e árvores seculares e o sobressalto do ruído a acordá-los. À passagem das Caldas de Moledo nunca conheci outra, e sempre fui ouvindo o choro dos de antigamente. Quando as suas termas estrelavam no céu dos possidentes e o Douro  os entretinha no vagar dos rabelos. Por então, ali à porta da Região vinhateira, D. Antónia Ferreira e o seu Marido davam o que podiam, queriam gente lá, investiam por bondade, algo que ficou nos mortos mas não na eternidade...

A estrada estreita. Os camiões TIR não sendo de cerimónias. O casario é quase só um amontoado de ruínas. Tábuas toscas e pregadas à pressa seguram antigas madeiras bem trabalhadas das portadas do hotel. Nas janelas, cada vidro ainda incólume é uma alma por enquanto em paz. Se alguém quiser saber dos enxofres do inferno que avance dentro essas paredes e esses três pisos, dos quatro do Apocalipse...

... a par da transparência do calor, no silêncio da cegueira, avistando o casal que atravessa a passadeira - o semáforo avermelhara para os automóveis - em pausada troca de palavras só audível para quem... for além da eternidade dos mortos e alcançar a da História.

O seu vestido negro roça e confunde-se no alcatroado da estrada. São desses mistérios o seu chapéu de plumas e a sombrinha. O cavalheiro, a quem dava o braço, de patilhas generosas com o melhor couro cabeludo, segue enchapelado e hirto. Espreita um relógio já sem ponteiros que foi buscar ao bolso do colete. Ei-los. Eis aí a Ferreirinha! Ao alcance apenas de quem não corra.

Seguimo-los com o olhar. Afundam-se nos anos de ouro dos velhos e imensos plátanos. Esverdece o semáforo e o TIR troa uma buzinão. D. Antónia, ainda a vejo amparada pelo Marido, parece desfalecer... E a brisa assobia um nico, entre as ramagens que cobrem este túmulo das Caldas de Moledo.

 

Vésperas

João-Afonso Machado, 26.09.20

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Nota bem, esse teu olhar tem hora marcada: nunca antes do cachimbo e do nosso serão. Nem antes nem depois. Tu não és o Nero dos Bichos do Torga, cinquenta e cinco anos de idade nos separam, ala que se faz tarde e as perdizes são sobretudo matinais. É, caro Egas, tens uma estirpe a cumprir -  a estirpe do avô Jardel e da avó Minês, e a do Paio, da Dona Mécia, da mãe Tareja. (A tua mãe, a cadela mais meiga que ao mundo veio, uma fera em terrenos de caça, a inveja dos caçadores em seu redor.)

Eu sei, os tempos vão maus e a idade deste teu pai já não ajuda. O Alentejo é distante, a caçada está em coisa pouca. Mas, meu Egas, a vida vai-se coxeando assim mesmo. Tapete quando tal, e monte se ele nos chama. Temos já programa? - Não!, não temos. Mas algo surgirá, disso estou certo.

Havemos de carregar a arma, assim tu sigas depois as minhas instruções: nariz fino e corpo dominado; boca de alface e espírito de entrega apontado à minha mão.

Oiço já o bater de asas delas, velhote. Este ano será dourado, Deus diz. Não há muitos mais pela frente - para mim, é claro; não para ti, criancinha de colo. Indo nós, anda-me com essa merda para a frente, não me envergonhes.

Nem queiras ficar órfão... Depois com quem conversarias em serões cachimbados? Mas se continuas a olhar-me com esses olhos, até a espingarda se me derrete nas mãos.

 

"Parabéns!"

João-Afonso Machado, 25.09.20

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Mais um ano minha linda

um mais, que a vida não finda

 

em corujas sentinelas

nas pedras frias sepulcrais.

 

Ri e canta, apaga as velas,

dá-me um beijo

e outra fatia do teu bolo,

 

dá-me o sabor, dá-me o desejo do teu amor

e um lugar onde saiba pô-lo e guardar.

Dá-me até o nome

por que o hei sempre chamar.

 

Água benta sobre os tuk-tuk's

João-Afonso Machado, 23.09.20

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À saída dos Jerónimos - e à vista de semelhante parque de viaturas... - a ideia chegou e instalou-se: tuk-tukar até Santa Apolónia. Em máquina pequena, a deixar cair uma lagrimazita de saudade dos tempos das Piaggios, as suas mudanças de mão, o travão de pedal como os das caminhetas... Assim atravessei a rua para negociarmos.

O preço foi rapida e justamente fixado. Saltámos lá para dentro, atrás do condutor o banco dos conduzidos, duas pessoas mais a bagagem, tudo a ajudar esquecer uma Lisboa que se queda mais triste quando a gravata se nos enrosca no pescoço, e o fato substitui o blusão ou as mangas arregaçadas.

Num ápice para trás ficaram a Belém dos pasteis e a Belém presidencial, à ilharga o comboio, e já raspávamos o Cais do Sodré, cá no fundo da Rua do Alecrim, o Chiado uma lembrança vaga no topo, adeus Lisboa, até um dia...

Aliás, a maré no Terreiro do Paço enchia ameaçadoramente de turistas. E de uma inusitada ondulação, o Tejo muito nervoso, invenctivando os passantes, a rogar-lhes pragas, a deixar no eco o ano sinistro de 1755. E quase a bater-me nos pés. - Oh! Tejo, aguenta aí, pá! Deixa-me, ao menos, apanhar o Alfa e alcançar Santarém, que eu de lá aviso a Protecção Civil: ela chega sempre a tempo... 

Por isto tudo, um simpático baptismo de tuk-tuk. Rápido a mais, como acontece com tudo o que é simpático. Muito dialogado e explicado, desde os segredos destas novas Piaggios até aos meandros dos transportes alternativos. E o arzinho fresco na cara, um ar de aventuras em mundos desconhecidos, um sonho breve de lonjuras a explorar.

(João Batarda é algarvio de berço, mas vive em Lisboa desde que regressou do Luxemburgo. No tempo bastante para alfacinhar por completo. Deixou-me o cartão do seu modo de vida - um operador de tuk-tuk's. Tem um aspecto feliz: passeia o santo dia todo, e leva os outros a passear. Está nele espelhada a diferença entre uma viagem de táxi e o percurso da cidade em tais triciclos, a mandar-lhe piropos se o vento a despenteia ou mesmo lhe levanta a saia...)

 

Quase flamingos

João-Afonso Machado, 20.09.20

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Não lhe cheguei, a esse céu de formas elegantes, esguias, carregado de psicadelismo esvoaçante. Novos e muitos quilómetros se seguirão, talvez até ao dia da jangada e do varapau nas águas mansas da lagoa. Provavelmente da lagoa de Óbidos.

Foi insistente a procura da imagem alada e cor de rosa. Ficámos a uns duzentos metros dela, separados pelo sapal e ensapatados, indevidamente calçados. Mas o bando de flamingos estava lá. A patrulha das garças reais também.

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E os patos, dezenas deles, boiando como brinquedos de corda a fazer quá-quá, os corvos marinhos, os galeirões... Toda uma cidade ribeirinha inacessível, por isso não condizente com a liberdade. Logo, não perfeita.

Avançaremos para a conquista dessa perfeição. Marchando talvez de galochas ou imitando as cobras, só de olhos à superfície, a caneta entalada nos dentes. Pirateando as intransponibilidades, criando, enfim, a bissectriz entre a estética da visão e as palavras que sabem explicar a vida.

 

"Pontos cardeais"

João-Afonso Machado, 17.09.20

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A sul o dia dorme à espera de amanhã

enquanto a poente a tarde vai quente

e festiva como se o hemisfério oposto.

 

A sul soam muitas horas de calma vã.

A poente é o mistério

do tempo sem tempo

entre as amoras de Agosto

e um adeus de desgosto,

 

eterna espera do Amanhã.

 

 

"Álvaro Marques - o edil"

João-Afonso Machado, 16.09.20

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Completaram-se agora 127 anos (o Tempo é, realmente, uma sanguessuga!), nascia em Famalicão Álvaro Folhadela Marques: foi a 4 de Setembro de 1893 e não demorou, pela falta prematura do seu Pai, a vida dos negócios da Família lhe fosse confiada e o obrigasse a assumir a gestão da Casa Folhadela & Cª.

 (Uma era tão tranquila – no fundo, tão recuada! – que ainda se vivia não aflitamente em mercancias de responsabilidade ilimitada – os compêndios jurídicos assim expliquem em detalhe o sentido desta afirmação…)

E esses os tempos de uma urbe famalicense ainda adolescente, a pedir vitaminação, forças para chegar a hoje e a amanhã. Quem lê os jornais de então, dá conta de um punhado de patrícios acima de tudo apostados em fazer crescer a terra e em musculá-la para que diante de ninguém baqueasse. Álvaro Marques era indiscutivelmente um deles. Talvez o maior.

Pelo menos, uma personalidade vincada, pragmática e decidida a fazer obra. Não se lhe conhecem outros compromissos políticos que não os com a sua gente. Teria a confiança da II República – no termo de muitas hesitações, isso é sabido, - depois de passar pela vereação municipal e alcançar – por nomeação governamental - o grau de Presidente da Câmara, em 1945. E nesse cargo se manteve, ininterruptamente, até à sua morte súbita, partida que pregou a familiares e conterrâneos em 30 de Outubro de 1957.

Mas esses 12 anos foram, na história da edilidade, a dúzia dourada das intensas novidades. Por tal forma que ainda agora a praça principal, diante dos Paços do Concelho, ostenta o seu nome. Sem que alguém o questione.

Vivia no alto da Rua Camilo Castelo Branco – lembro bem a sua casa – rodeado de jardins com portal para a Rua Direita. Tudo veio abaixo há décadas, ficaram fotografias e memórias, um pouco de saudade da nossa velha vila e uma correnteza de prédios a ocupar esse espaço. É claro, já Álvaro Marques debandara há muito para um destino melhor, tão certo quanto a meta que alvejava em cada uma das imensas vezes que apanhou o comboio e foi a Lisboa, à Administração Central, reclamar pressa nos melhoramentos planeados para Famalicão.

(Sim, de comboio, sem avião, sem Mercedes, sem chauffeur, nem à partida, nem à chegada. Sozinho, em qualquer hotelzinho.)

Chamava-se a pessoas assim – “bairristas”. Um termo extinto na nossa imprensa: um termo, aliás, agora, em plena “globalização”, algo mal conotado. Na altura, o sinónimo de alguém que prezava, sobretudo, os interesses e o desenvolvimento da sua terra. E que punha esses objectivos acima dos seus, pessoais. Neste andamento, Álvaro Marques impulsionou a construção da cadeia no Talvai, dos passeios da Rua Adriano Pinto Basto e da Avenida – hoje – 25 de Abril; dos acessos à escola primária e à sua cantina e da edificação de muitos estabelecimentos do ensino básico no concelho; do embelezamento da actual Praça D. Maria II; e do imprescindível estádio futebolístico…

Mas muito mais: surgem, por então, novas artérias viárias; o “edifício de rendas económicas” da Rua Eng. Fernando Ulrich, a Avenida Humberto Delgado dos nossos dias; e “Bairro” que foi, deixou, e voltou a ser “do Cardeal Cerejeira”…

A coroar o bolo, o Mercado Municipal, a servir até ao ano transacto, e agora em remodelação. Todavia, seja ela como for, o Mercado Municipal sempre permanecerá sempre, talvez funcionando em moldes diferentes, - o mercado de Álvaro Marques.

Durante o seu prolongado mandato ocorreram os terríveis incêndios nos velhos Paços do Concelho. É também nele que o arquitecto Januário Godinho apresenta o seu vencedor projecto para um novo e arrojado edifício camarário. Álvaro Marques, porém, já não assistiria à sua inauguração, em 1961…

Nas caminhetas, os mais novos ouvem ainda, dos mais idosos, agradecidas invocações deste nosso edil. É de justiça! De resto, não numa caminheta, mas num restaurante, ouvi há pouco, de um deputado lisboeta, que Famalicão é um dos chamados “municípios-modelo”. Ainda bem!

 

Da rúbrica Ouvi nas caminhetas in Opinião Pública de 16.SET.2020)

 

 

De comboio, da Régua ao Pocinho

João-Afonso Machado, 14.09.20

Um passeio absolutamente ao alcance, e tantos anos de desprezo... A Régua, em Setembro, no auge do cosmopolitismo, a pedir meças às cidades maiores. Uma vida cara, lá para as bandas, e um impressionante vaivém de gentes. A estação ferroviária, de súbito cheia de idiomas díspares, impaciente porque o comboio, bem à portuguesa, vinha atrasado. Íamos subir o Douro até onde pudesse ser.

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Não tardou a primeira barragem. Bagaúste. O rio hoje é isto: ora um lago, ora um fio de água onde por milagre os barcos-hoteis vão furando sem naufragar. E nós sempre pela margem, de olho esbugalhado ante paisagens imensas, para já povoadas, o mundo das quintas vinhateiras.

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São montes que se despenham das alturas, em socalcos agora trabalhados por máquinas, já sem os muretes de pedra e as escadinhas, vinhas modernas, decerto mais rentáveis.

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Adiante, não muito, o Pinhão. O coração do Douro, se a Régua é a sua capital administrativa. A vida dos povos da Região contada toda nos mais ilustrados e hábeis azulejos da estação. O comboio enche - assustadoramente - de passageiros. Está ali o mundo inteiro e, cada vez menos, a minha mobilidade para fotografar, conquanto a automotora se desloque com todas as janelas abertas. À moda antiga...

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A próxima assinalável paragem é no Tua. Vale dizer, junto à confluência deste rio com o Douro. Nova - e mui caudalosa - invasão de utentes... Pelo meio, antigas peças da ferrovia, um misto de exposição e apodrecimento, mas porquê?, não me ocorrem outras linhas em que tanto seja este descarado desperdício.

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Depois o Douro parece emagrecer apertado entre paredes de granito. Por tempo bastante - as vinhas somem-se, e levanta a voz um panorama calado de pedra, carrasqueiras e codeçais e estevas.

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Lugares de Adamastores fluviais onde duvido alguém tenha chegado. Ou sobrevivido... Mortes vindas do céu para as águas, ignotas e esquecidas.

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(Ladeando o drama, a automotora prossegue a sua marcha. Velozmente. E nós no mesmo ritmo, porque o Alto Douro não cabe todo aqui...)

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Mas há o tornar ao vinho. Já em terras de muito poucos conhecedores. Passamos a célebre quinta do Vesúvio da celebérrima Ferreirinha (D. Antónia Ferreira). Para trás ficaram os tremendos cachões e o fantasma de Forrester. Neste Douro mais selvagem, mandam muito, actualmente, - os britânicos do Oporto Wine.

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Afora eles, estranhos gostos se penduram nas margens ingratas do rio. Perco-me a pensar como e de quê - ou quanto... - se aguentarão naqueles galhos de vida.

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Enfim, o Pocinho. Daí para a frente, é o nada ferroviário, salvo a saudade de comboios da minha juventude, ainda a vapor, a linha do Sabor, os machos que montávamos e vinham carreiro abaixo, só por milagre não se - e nos - esborrachando debaixo das locomotivas. É Fozcoa e a proximidade de Espanha. Não é - um boteco sequer para nos dessedentarmos em dias assim, abafados, tragados pelas serranias, a pedir encarecidamente cerveja fresca, uma fatia de qualquer coisa, bons anfitreões... Uma lacuna triste no Douro Vinhateiro - Património da Humanidade!...

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Já no regresso, entardecia mais depressa que o andar do comboio. O cansaço instalara-se nas carruagens. Mas houve sempre um lugar no pódio para a Quinta das Carvalhas, no Pinhão, a cabeça da Real Companhia Velha.

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Conhecia-a, há mais de três décadas, no meu baptismo às perdizes no Douro. Trazido e recebido por gente para sempre no meu coração!

 

Na estação, esperando o Passado

João-Afonso Machado, 11.09.20

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Era um propósito já muito velho, sempre adiado, o de visitar o amigo em pleno coração transmontano desterrado, um antigo furriel da mesma fornada no Ultramar.

Fora uma época dura, dessas que deixam cicatrizes no corpo e a memória em chaga viva e apenas pela camaradagem salva da infecção fatal. 

Não tinha carro. Não tinha emprego. Aliás, não tinha grande asseio também. E ninguém tinha consigo. Ainda assim, depois de décadas, teve a sorte de uma boleia até à Régua. O ex-furriel, o tal antibiótico como só em Trás-os-Montes os há, e o medicara com o dito transporte arranjado por um conhecido vindo ao litoral em negócios de azeites, - esse velho camarada, afiançou-lhe fosse da Régua ao Pocinho, de comboio, e encontrá-lo-ia à sua espera na estação.

É para o que ele se prepara, por uma vez empenhadamente. Não negligenciou a barba, deixou o barbeiro lhe lavasse o resto de óleo cabeludo e foi ao armário buscar os seus sapatos pretos, muito cambados, as calças de vinco e uma camisa branca. Quem não tem emprego não faz contas aos dias, a mala rota e de muito chiar nas ferragens acolheu umas peçasitas de roupa, umas fotografias ainda dos idos militares e um chouriço bem embrulhado, de prenda para o anfitreão.

Estará agora na Régua, aguardando a automotora para o Pocinho. No curso de tantos anos, o que se lhe deparará pela frente?

(E eu, que o construi com a minha caneta, digo que o tempo de ontem produz os mesmos efeitos enigmáticos das fulgurantes tecnologias de hoje...)

 

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