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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Página gastronómica

João-Afonso Machado, 29.08.20

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Era uma pechincha e ele não resistiu. Sequer avaliou antecipadamente as invencíveis camadas de gordura que toldavam toda a cozinha. Sequer se lembrou, não sabia cozinhar. Era apenas a concretização do seu sonho gourmet, um restaurante nouvelle cuisine.

Confrontado com a realidade, o contrato já assinado, ainda assim não esmoreceu. Tratar-se-ia apenas de trazer à liça a sua conversada, mulher de armas e perseverante (ao ponto de não desistir de injectar juízo na cabeça do mariola...).

(Aliás, as mulheres são lutadoras natas. Não talvez com mais força bruta: mas resilientes, briosas, penitentes, sempre perfeccionistas. Com todos estes predicados, fatalmente levaria de vencida a crosta fedorenta do fogão, da banca, do exaustor...)

Por tuta e meia, estava ali o futuro do casal. Ela trataria dos grelhados, ela arrumaria a sala. Não tardariam os fundos para o casório, a filharada tão desejada. Ela não disse não.

Onde se situa o dito santuário? Lá para um canto qualquer da rosa-dos-ventos, parece. Não seria por acaso, baptizaram-no Peter Pan. E o dia da inauguração, planeavam-no no maior entusiasmo, os amigos já todos convidados, em extase perante a criatividade dos pratos, a variedade e a estética da  sua apresentação à mesa.

Ele imaginou um apêndice metálico, um gancho, sobre cada poiso do manjar, quase plano, a lembrar lousa, onde se penduraria - qual espadarte no cais - o peixinho grelhado, atapetado por esparregado, umas batatinhas... A modos que um fundo do mar lindíssimo, e a dourada, o robalo, a nadarem nele. O mesmo com a posta de carne magnífica, pingando sobre saladas, como se a vaca ainda pastasse no prado. Isso sim, seria inovação, genuína nouvelle cuisine! - Oh filha, e tu a cortares miudinho com a faca, ainda pões lá mais umas couvinhas às cores!

Ela mandou-o estar calado e proibi-o de se aproximar da cuisine, do mercado, da loja das loiças. Fosse varrer a sala de jantar e tratasse dos vinhos. Ficaria a seu cargo receber a clientela. Ao menos cobrasse as contas sem se enganar.

Assim o serviço foi funcionando em travessinhas de alumínio, bem recheadas de peixe ou carne, arroz e batata, alface, tomate e cebola a dar um tom de alegria e frescura. Very tipical...

Quanto às bebidas, ele lia todas as crónicas de gastronomia dos semanários. Decorara a terminologia dos enólogos e não havia adega cooperativa que não produzisse, servidos ali no Peter Pan, vinhos correntes os mais aprimorados e desafiadores do palato dos comensais - Então esses taninos? Esse final prolongadíssimo e afrutado? O peixinho ainda nada feliz nessa frescura, nesses aromas silvestres, hein?!

Tudo iria correr bem. Inscrevera-se até num curso de inglês, prevenindo a avalanche turística. Não fosse o maldito Covid, ele a sua conversada navegariam hoje com o vento pela popa... E com um primeiro filhote já integrado na tripulação.

 

De eléctrico até à Praia das Maçãs

João-Afonso Machado, 27.08.20

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Em Sintra pingava grosso e foi necessário buscar abrigo enquanto o eléctrico não chegou. Finalmente, aquela ronceira trepidação, a sua imobilidade e a jovem turista, agilissima, de um salto lá dentro. Em calções muito pela virilha, impedindo-me de, no tempo, dar a mão, uma ajuda elegante, à donzela que alçaria um pouco a saia do vestido e se firmaria no corrimão para subir os degraus. Porque a sombrinha, o chapéu com uma fita pelo pescoço, tudo atrapalharia.

E o tornozelo à vista, feito o câmbio, as longas e apelativas pernas desta provável britânica. O demónio, tal desnecessidade de ajuda, uma emancipação sem suspiros ou fragilidades!

De modo que nem corpetes, nem decotes, nem as carnações ebúrneas de antigamente. Apenas uma t-shirt e o umbigo de fora, um corpo ávido de sol, tudo tão perto e tão distante...

Ainda assim o tempo recuou na viagem até à Praia das Maçãs. À força, de atracão, impondo-lhe o laçarote do chapeuzinho de palha sob o queixo e vestindo-a com um olhar encantadoramente pestanudo. Um vestido leve de veraneio,  sempre em troca e destroca com as hot pants e a ausência de corpetes e espartilhos. Numa alternância de romantismo e gulodice, Galamares, Colares fora.

O eléctrico, realmente muito trôpego. Houve um breve momento Cisco e a visão das faíscas da máquina sem travões, para baixo é sempre a descer, o guarda-freio agarrando desesperadamente o comando, tentando evitar a tragédia. Sim, esse foi o instante do retorno ao vestidinho de chita, à sombrinha, a um imenso delíquio da apavorada miss, tornáramos finalmente à era dos galãs. Todos ao poleiro, a ver quem é mais galo!

A imersão do eléctrico em matas de pinheiros e depois a rasar casas e sebes, desviou a atenção para outras futilidades, e a despachada turista de esbeltas pernas e tanta auto-suficiência regressou.

Talvez ainda haja avistado a sua versão romântica, ao ser apanhado em flagrante de olhos nela. Linda, linda. E enrubescendo, baixando a cara. O chapeuzinho a cair, a cair, já no chão, esse o momento crucial - Can I help you? - e por aí fora, a Praia das Maçãs à vista, o termo da viagem, uma ajuda naqueles temíveis degraus, outra no labirinto das ruas.

Talvez o lunch, até... A imaginação não paga bilhete, viaja de borla, sempre sorrateira. Mas no destino, aquelas pernas que fugiam dos calções, em formas esguias e velozes, sumiram. É que as minhas, coitadas, já nem conseguiam acompanhar a sua pedalada. Poor old man!

 

"Os bolarecos da D. Alexandrina"

João-Afonso Machado, 26.08.20

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Andando eu doentinho, era certo o mimo da minha Avó: as bolinhas de coco, ora brancas, ora amarelas, conforme enroladas em clara ou em gema do ovo. O coco! Esse fruto empedernido e capaz de, ao cair do alto do coqueiro, rachar a cabeça a qualquer paisano! Nas Áfricas longínquas, não ali, transformados em raspas brancas, niquinhos que cobriam essas bolinhas e lhe davam um sabor especial. Quase ninguém gostava de coco lá em casa, pelo que a lata de bolachas que a Avó enchia era minha e só minha, sujeita ao mais descarado ataque, sinal de reconhecimento pela sua inspiração culinária. Sem zangas… Mais a mais, a Avó era a minha madrinha….

Depois, os anos  tomaram o freio nos dentes, um certo dia à Avô o coração disse mais não, eu, rapaz novo, triste, inconformado, fui distraindo essa lacuna de modos diversos – um deles com as éguas da Casa, cavalgando as redondezas - deixando os anos galopar muito mais depressa, até sentir o peso do corpo e dos sessenta, o título de sexagenário, suponho saudável mas mais guloso do que nunca.

Contei-o já:  quando descobri e comprei o meu palácio em Famalicão topei em frente o restaurante Portuguesa, o meu spkear’s corner. Futebol, política e coisecas da terra. É onde regularmente almoço ou lancho e janto.

Não que seja um lugar de variadas sobremesas. Mas há ocasionais surpresas. A mais recente das quais, os bolarecos da patroa, a D. Alexandrina.

Um passo fundamental para a História famalicense. Evidentemente, não posso revelar a receita. Apenas direi, o doce é feito a partir de um tipo de bolos de feira, iguais aos que o nosso trolha de antigamente nos oferecia quase todos os dias, difíceis de rilhar, mais duros do que a dentição, bolo penoso de duração indeterminada na sua deglutição. Somente, ali aparecem moles e saborosos. Recheados de marmelada por dentro e polvilhados a coco por fora. As tais raspas, a caírem do prato, que a gente depois com os dedos apanha e saboreia. O bolareco da D. Alexandrina, das pedras do deserto transfigurou-se num doce o mais apetecível que este mundo nos consegue proporcionar.

O fenómeno atinge, aliás, maiores proporções. Numa rápida incursão histórica pela Ordens religiosas de cá, descubro o mosteiro de S. Francisco, em S. Martinho do Vale, muito empreendedor na confecção de hóstias. E nada mais! Ora, sendo a D. Alexandrina uma santa senhora, os seus bolarecos tem, inquestionavelmente, de ascender ao estalão e à qualidade da doçaria conventual. Ela não se importará, pode até mudar-se o nome do manjar – secretos de anjinho, por exemplo; ou maminha do mesmo

Depois será o costumeiro percurso: a feira dos produtos artesanais, o reconhecimento dos forasteiros, a glória Europas e Asias fora. E uma latinha deles para cá. Por este meu modesto contributo… Ou talvez não: é deixar a minha dilecta sobremesa na sua fonte. Lá continuarei a banquetear-me. Avante, Portuguesa! Casa nobre de acepipes únicos.

Era o que, no outro dia, uma gordalhufas exaltada proclamava na caminheta: pela próxima quarta-feira iria lá por uma saca toda de bolarecos. Ah, pois!

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 26.AGO.2020)

 

 

Farmácias lisboetas

João-Afonso Machado, 23.08.20

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O mal foi o remédio a menos. Os médicos para nada prestam! Vá lá a gente confiar neles!

O coitado, de si mesmo pouco seguro nas pernas, mal vitaminado, tomou-se de vertigens, estranha sensação que lhe apanhava o abdómen e a cabeça. E feria muito a vista, por onde o breu arrotava e se ouvia o som cavo do eco.

Valeu-lhe a vizinhaça, já no fundo das escadinhas. Nunca aquele arcaboicito contara tantos degraus tão velozmente. Descera-os de um passo só e, cá em baixo, tocou a gemer, a gemer. Combalido, sem se ter nas pernas, sugeriram-lhe tintura de iodo para o golpe na testa, uma fonte vermelha e abundante.

Que não, que não... Com mil entarameladas graças e um lenço empurrado contra a bica de sangue, entrou na farmácia logo ali. No fim das escadas, é claro. Socorrido prontamente, mil atenções em seu redor, veio o alcool desinfectante e, sob o seu efeito, despertou. A farmácia chamava-se, curiosamente, - taberna; e os seus dedos molhados naquela purificação estancaram a hemorragia. Até retomou o equilíbrio e cuidou de se lavar num pequeno recipiente, um cálice - assim chamado - emborcando o que dele sobrara. Sentiu-se novo.

Entoou um fado fatalista e, pelo sim, pelo não, pediu outra dose de remédio para a viagem, não fosse o diabo tecê-las:

- Era mais um calinhos de bagaço, fax'avor...

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 19.08.20

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Com Lisboa repelindo já o invasor normando, ela aventurou-se cá fora, embuçada e cautelosa. Encontrei-a, por mero acaso, deambulando no Terreiro do Paço, quando cogitava se havia de atravessar o rio e dar um adianto no meu estudo sobre churrasqueiras nacionais.

Foi a festa do costume! Lamentavelmente, sem abraço nem beijinhos, conforme a nova moda do distanciamento social. Mas sempre tilintando das suas pulseiras, nada bronzeada, praias com semáforos e fitas métricas - não! E, cintilando, a ideia sua:

- Vamos a Cascais?

Eu acho, ninguém vai a Cascais depois que mataram o Rei e o Príncipe Real. Porém, como recusar? Fomos.

A vila estava animada. O mar chão, a Praia dos Pescadores muito colorida das traineiras. De súbito, um sulco cavado nas águas e a minha amiga gritando de excitação:

- Olhe o nosso Presidente! Lá vai ele salvar mais um afogado!

Sem óculos, cegueta e ofuscado pelo sol, ainda alvitrei:

- Não será um golfinho brincalhão?

(Gosto muito mais de golfinhos do que de presidentes da república...)

- Qual golfinho! É o nosso Marcelo. Aposto que está no mar alguém aflito e aí vai ele!

Imperava o silêncio. Àquela velocidade o presidente, com toda a certeza, ia chegar atrasado ao salvamento. E a vítima devia ter submergido já, atacada por um tubarão. (Negando-me os golfinhos, eu replico com carnívoros letais...)

Servisse o tilintar das suas pulseiras para incutir ao moribundo uma réstea de esperança, surgiam os bombeiros de Cascais, chocalhando a sineta do seu "meio terrestre".

E conclui: a nadar assim, tivesse eu trazido o maillot e o salvamento seria obra minha. Obviamente cederia, então, os meus créditos à Casa Real portuguesa.

 

Nova Lisboa

João-Afonso Machado, 18.08.20

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Iria já no rol dos do crisma e só dificilmente se lhe augurava nome lusitano. Menos ainda voltaria ao tempo de Ulisses... As gentes de lá muito contrariadas e Lisboa, esperneando, a fechar-se à chave. Logo de manhãzinha, nove horas, cortou o trânsito e as falas, quis-se outra vez magra, sem exuberâncias.

Sussurrante à esquina e apregoando gaiteira nas praças, coisas simples e saudosas na janela de cada um. Era um ponto final nas empanzinadelas de estrangeiros.

Lisboa sob o risco assaz menor de apoplexia. Longe da hipertensão. São onze da manhã e Lisboa ginastica-se, pouco ou nada tuk-tukando. De portas trancadas à multidão plurilingue. Somente a acompanhava um severo grupinho nipónico, espremido, seria a sua lição de artes marciais. Havia no ar um sabor insosso a sushi e, nas redondezas, uma ou outra espinha saxónica. Vamos já na hora do almoço, são quase duas a tarde, e nada mais está acontecendo. A dieta rigorosamente cumprida.

Lisboa é uma nova Lisboa, a velha Lisboa. Bravo, Lisboa!

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 12.08.20

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Serão ás vezes quilómetros entre o sólido e a superfície líquida. No entanto, cá no topo, há atmosfera e vida. Malditos aviões enganadores, garrafas de oxigénio! De um ou outro modo, com ou sem eufemismos, nós somos a terra. Mais ou menos proximos dela - mas, também definitivamente, sem terra... Quero dizer, sem propriedade, a não ser a nossa identidade, ela só. E apenas remando (ou esvoaçando) contra o mundo perdido.

 

Uma breve escapadela

João-Afonso Machado, 08.08.20

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Dois dias penteados com vento norte, cabelo assente pela lingua da Costa Nova. Dias marítimos, a bordo, levando a máquina fotográfica no lugar do colete de salvação. As embarcações, de um modo geral, oferecem três perigos: dois são o entrar e sair delas, a escorregadela, o trambolhão; o outro é simplesmente a morte, ocorrendo o seu naufrágio. Fora esses momentos menos agradáveis, são a paz, os segredos da ondulação e a maresia e as imagens.

Na Ria, a maré baixa traduz-se numa espécie de Vietname desarmado, a não ser de lodo. E as aves nele e no ar, substituindo helicópteros e caças. Apanham-se lá ostras; mas sente-se a falta dos caimões e das serpentes, dos nativos acenando das margens, de alguma tragédiazinha natural, qualquer desaguizado entre répteis e humanos.

(O veleiro francês, já veterano,  um rapazola desgrenhado ao leme, a miúda como uma sereia figura de proa, depois de passar o Forte da Barra, pensando em atracar, e a nossa Polícia pensando no que viria lá dentro, ia haver rusga... As águas também ocultam muita malandrice no calado dos navios...)

Lulas em S. Jacinto, menos furos no cinto - um ditado popular da minha autoria. E, a ajuntar aos planos para o próximo Verão, - as lontras do canal de Mira.

E que espantoso banho de ar fresco! A limpar-me a derme desta tuberculose que me tolhe na estufa do Interior, quedo da raiz às folhas mais novas. Foi o mar e o Caramulo, sacrossanta coligação contra Cacia.

Para onde, a próxima escapadela?

 

MACHADO, JA com prognóstico reservado

João-Afonso Machado, 01.08.20

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Aparentemente seria apenas da sua já avançada idade. (Sim, ninguém tema, tudo bordeja muito ao largo do Covid19.) É, realçando, a prostração, o alheamento, a pena enferrujada e o tinteiro quase seco. Uma imensa vaga de desalento, ainda maior do que as do mar calamitoso ou do calor maldito. Recolheu a casa, passa dias sem se erguer da cama.

Os vizinhos foram visitá-lo. E a Miquinhas veio de lá com notícias, um semblante sucumbido - Está mesmo muito malzinho... - desabafou. Cercada por uma curiosidade canibalesca, disse mais - Já vomita tinta negra! - E para as mais lerdas, num bufo de ave carniceira, - É sangue repisado!

O médico veio, conquanto não chamado por MACHADO, JA.

Foi uma visita curta. O facultativo tomou-lhe o pulso, auscultou-o, apalpou-lhe as entranhas... e propôs-se sangrá-lo. Numa súbita valentia de voz, firmíssima, MACHADO, JA redarguiu - Com o devido respeito, Sr. Dr., vá-se foder!

Assim tudo ficou nos costumeiros caldos de galinha e umas papas de linhaça precavendo convulsões.

Também eu mandei um bilhete e depois me avistei com o enfermo. Conversámos ao de leve. Frisou, deixassem-no em paz, aquilo era cansaço, estafa. Férias, apenas férias... e logo a pena voltaria ao tinteiro.

Despedi-me algo agastado. Que será de nós quando chegarmos à sua idade?