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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Do quotidiano aquático

João-Afonso Machado, 31.07.20

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Não é para todos os dias, a visão de um pato debruçado nas suas preocupações. Se fosse macho, talvez filosofasse sobre os problemas da Humanidade, os patos são como os leões, as fémeas é que se encarregam da mercearia. E era o caso, lia-se no seu semblante quanto lhe doía o custo de vida, a ameaça do desemprego.

Talvez ainda com uma réstea de tempo para se mirar no espelho e cuidar qualquer coisinha a sua imagem. Mas definitivamente dona-de-casa, frente à montra do supermercado a comparar preços, na expectativa de alguma promoção mesmo debaixo do seu bico.

Assim o port-monnaie não se lhe aperte. E não venha depois coçar-se sob as asas, a catar os malditos piolhos, quero dizer, alguma moeda de um euro esquecida.

 

"Sem voz"

João-Afonso Machado, 29.07.20

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Escadinhas a fugir,

não a escadinha fadista

em beco colorido, a sorrir.

 

Escadinhas sem voz

além do eco – o eco dos portões

batendo sós

em passos apressados a partir,

como de ladrões, passos voados

 

nas escadinhas a fugir.

 

 

Crime em Moscavide

João-Afonso Machado, 27.07.20

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O repórter ficou abalado pela notícia de última hora. Ao início da tarde, na Avenida de Moscavide, cinco disparos de pistola e uma morte. Que fosse averiguar e fazer a reportagem. O seu conhecido Tubarão, homem calejado nos desacatos da localidade, - pensou ele - dar-lhe-ia os informes. Partiu.

O cadáver jazia ainda na rua e o homicida fora entregue à Polícia, imobilizado pelos populares. A exaltação era geral e sobretudo feminina, ali, no coração de Moscavide. Muita gente de origem africana, mulheres carregadas de explicações, negras e esféricas, de corpo forte e vestindo garridamente. Predominavam os amarelos, rosas, os encarnados das touradas não longe. A gesticulação batucava, como os impropérios, uma gritaria infernal. Os vizinhos explicavam, cada um à sua maneira, a origem do conflito e o seu dramático desfecho.

Tudo se passara à velocidade da luz, sob  a sombra de uma das raras árvores, esse orgulhoso monumento, na Capital do Churrasco. Mesmo defronte a uma churrasqueira.

Sente a maior dificuldade, o repórter, em condensar tantas vozes simultâneas e vingativas. Ele já conhece o pregão moscavidense de todos os dias. Tomou as suas notas.

E com a tarde a envelhecer procurou, enfim, o camarada Tubarão. Encontrou-o, é claro, em outra churrasqueira, em rua mais recatada, menos devorada pelo trânsito. - Então, meu caro, que história é esta? - Meu! - redarguiu o Tubarão, com um olhar batido em tais merdas, - A cegada do costume. Desentenderam-se e o velhadas tinha uma pistola, mas não prá colecção...

Disse nada mais. Apenas mandou uma bisga ao chão, acendeu o cigarro e fumou-o, numa sande de imperial com coxinhas de codorniz. A trapaceirice dos árbitros do futebol voltou à tona. Moscavide adormecia, já desmemoriada de mais uns tiros. Apenas se mantinha acordada a Capital do Churrasco.

 

Amanhã?

João-Afonso Machado, 25.07.20

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Inspira-me o Cardeal Tolentino de Mendonça e a sua tão simples verdade - A Fé tem a ver com a noite

Pois tem. Todas as noites, todo o silêncio de espera por amanhã; toda a esperança pairando acima da solidão e das vozes que se foram calando.

Todas as noites, o remédio todo da Fé. Na escuridão, não sei por que tacto ou olfacto guiados nesse reino de incertezas.

Há de ser por isso (falamos nós tão pouco nisso...) o Cardeal Mendonça remata assim - Hoje temos uma grande dificuldade em aceitar o enigma. Por isso cancelamos tão facilmente os lugares sem resposta.

Sim, a noite é um lugar sem resposta. É uma aposta, um resultado incerto, - talvez o tal amanhã, a continuação da continuidade.

 

"Vagas de calor"

João-Afonso Machado, 22.07.20

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Fui a Baião, mantendo o ritual de, na A4, atravessar a serra de Valongo em chamas. Como dispenso o ar condicionado, de janelas do carro abertas para arejar lá me sujeitei a um belo pedaço de fumo nas narinas, no corpo inteiro. É a época da romaria dos incêndios, assim será sempre, não há pandemia que lhe imponha o confinamento.

Enfim, Baião também esturricava, mas de puro calor ambiental. Felizmente o restaurante era amplo e fresco, os filetes de pescada óptimos e o branco da casa condizia com eles, espertíssimo, muito refrigerado. Verde, claro, note-se Baião ainda é Minho, ainda é da nossa Região Demarcada, mesmo que nos confins desta Província de eleição. Conquanto muitos o queiram já no Douro (dizia-me um homem de lá de Baião, até ao Douro vão mais cinco ou seis graus centígrados…), só porque em Lisboa o incluíram no distrito do Porto. O mesmo seria dizer, Cabeceiras e Celorico são Minho e Mondim é Trás-os-Montes, quando tudo é Basto e outra vez vinho verde…

Desci aos fundos do vale do rio Ovil. Cercado de granito (lá está, ali não topamos manifestações xistosas...), em plena Rota do Românico, naquela baixa rondando os 40º, uma pingadeira, uma sauna autêntica. Consegui, ainda assim, regressar a Famalicão, onde idêntico programa me aguardava. Pela noite fora…

Não fosse começar já a transpirar, aproveitaria para recordar com saudade as vagas de frio, a minha samarra, a mantinha nos pés. Mas, por amor de Deus, tragam a ventoinha, a vaga é, insuportavelmente, de calor – sem termo à vista. A sul, a rapaziada marimba-se no Covid19 e ruma aos magotes as praias. Por aqui, procura-se um nico de sombra e de aragem em qualquer bosque que, por acaso, não esteja a arder. Ou então, fecham-se as persianas, as vidraças e aguarda-se a chegada das estrelas para pôr o nariz fora de casa. Até lá, guiados pelo instinto, de liana em liana, corredor fora, por sucessivos copos de água na cozinha. Ou na nascente, como queiram.

Mas, em boa verdade, não será caso para dramatizar. A vaga de calor, dentro do bunker de cada um, é boa conselheira da leitura e da escrita, de qualquer filme que valha a pena. No pesado silêncio da canícula, as ideias às vezes chegam às conclusões. O trajar caseiro tropicaliza-se, a tanga transporta-nos aos Havais da nossa imaginação. E cessa a proibição de pôr os pés em cima do sofá. O panorama caminha aceleradamente para a descontração carioca, oh areais de Copacabana!

Somente, a vaga de calor leva-nos mais lesta o ânimo. Triste serão o de sábado, com o Famalicão de vitória já no bolso, a ceder um empate ao Boavista... São noites pior dormidas, uma tristeza que se abate sobre nós com o termómetro a fazer pressão, maldoso, e a gente sem posição, sem sono, sem vontade, com nada!

Por todo o Parque da Devesa, o olhar comprometido da ausência quase geral. Julho já cheirando vagamente ao seu estertor. Agosto a caminho. Quem irá para fora? Poucos, decerto. Mas, sendo o mês das nortadas, que ao menos a vaga de calor se ponha a andar para longe. Em Setembro? Nos tempos que correm tanto pode nevar como, uma vez por todas, frigirem os nossos miolos.

 

(Da rúbrica Ouvi nas caminhetas, in Opinião Pública de 22.JUL.2020)

 

 

Tratado elementar do namoro (II)

João-Afonso Machado, 20.07.20

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Natureza e metodologia - Namorar é viver. E viver é evoluir. Há já mais de um ano o ninho foi construído e acomodado com penugem. Está um encanto e ela sempre bela, bem arranjada em conbinações (salvo seja...) de tons turquês. Eventualmente um nada pálida, a necessitar de aventura. 

Por vezes, casmurra, dada a amúos, à indiferença. Fazendo de conta que a conversa não é consigo, aparentando até um certo ar galináceo.

As relações amorosas devem pautar-se pela harmonia. E se o lado feminino momentaneamente claudica, competirá ao parceiro evidenciar o seu brilho, o seu esplendor, toda a sua pujança. As formas apolíneas e coloridas do seu carácter, do seu penteado, porém jamais com estridências de voz, antes rugindo vagaroso, à moda do leão.

A dama sentir-se-á compreendida e protegida. Sofrerá um relance de submissão, assaz passageiro, para acabar lançando-se nos braços hercúleos do seu amado e guardião.

A vida do casal tornará então ao calorzinho do lar.

O ramo da oliveira (aditamento de estudo não obrigatório) - Há extravagâncias inesquecíveis que qualquer noite de apaziguação reclama e merece. É o caso do salto à Tarzan para cima de um grosso ramo de oliveira e, neste, o sequente salto, fazendo a lua piscar o olho, até os infinitos do sétimo céu. Ele e ela, os dois.

 

Imunidade de grupo

João-Afonso Machado, 17.07.20

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Rabbit nasceu predestinado, um genuíno Ghandi do povo Leporidae, essa gente perseguida e sempre aguardando o seu messias. Eram tortuosos os caminhos da raça tão pobre quanto fértil, um naco na brasa para todos os predadores das redondezas. Acordar de manhã, para eles, era sofrer a inclemência das muitas horas até se iniciar o dia seguinte de igual angústia.

Os Leporidae, conforme os seus textos sagrados, criam, há milénios e milénios, na vinda do seu redentor, enorme e lebrasco, com navalhas de javali e riso cavernoso, rilhado. Ele - com "E" grande - os salvaria da escravidão e, através de oceanos abertos de par em par, dentuça afiada, os conduziria à terra esquecida dos pássaros dodós.

Porém, Rabbit, vindo ao seu povo Leporidae, em nada se mostrou, odontológicamente falando. Sequer coloquialmente, - apenas roendo umas ervitas e aproximando-se dos hominídeos, seus maiores inimigos, com um sorriso que tinha de tudo. De dócil, de assustado, de doméstico ou familiar, de expectante e implorativo. Rabbit assim deu o peito às balas, rezam as escrituras. O seu povo dele completamente desacreditou.

Ora, nesse tempo, não havia pai hominídeo que não trocasse a espingarda pelos vagares domingueiros de braço dado com a esposa, mãe dos seus rebentos apenas nem por isso orelhudos como os Leporidae.

Assim o mundo mudou, - com cenouras e repolhos. E a voz das fémeas e juvenis Hominidae, de cócoras a beijocarem os Leporidae. - Papá, és um assassino! - Lara, filha, era só um coelho! - Báá´, querido bichinho! - Tal o Édito de Constantino. Não havia mais que temer a hodienta doença da perseguição.

(Esta a transcrição abreviada de um documento datado de 2020, em que os masculinos daquela espécie bípede, foram estrafegados pelos do género feminino, dominante. - Feita a devida interpretação em 2500, tendo Cristo voltado à terra, por um esfomeado cenobita de Famalicão.)

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 14.07.20

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Talvez venha a confessar, pastei na grande duna fibrosa e bebi a água que me escorreu do corpo e lavou toda a minha memória. Exceptuando, é claro, a das muitas avalanches ocorridas, sempre rugindo no seu cilindrar da paisagem.

Espreitando dois meses

João-Afonso Machado, 11.07.20

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Diria um funcionário público: é um tordo. Ponto. Correndo o imenso risco de prejudicar a nobre causa da gente livre, agarrado ao manual, sai a alternativa - é uma tordeia.

A tordeia é maior. Mais pintalgada no peito, manchas grandes castanhas. Além disso, sedentária. Boa cantadeira, assenta-lhe muito bem o Minho. É uma companhia tão agradável como os melros, e talvez assobie melhor e melhor regale a gente nos fins-de-tarde.

É do que a vida se faz - de lotear espécies animais, as aves, que são as de maior beleza. Este para aqui, aquele para ali... Ler-lhes o voo, o piar, as formas, saber distingui-las, pelo ninho que seja... Tudo destaca a maçada que é trabalhar e ter clientes. Aos 60 anos já se pode dizer isto em voz alta e procurar outra bicharada em honra ao nosso saber.

Ontem, no Parque, também se viram lagostins-de-água-doce, armados até aos colarinhos. Coitados!

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Apanham-se delicadamente pelo traseiro, e assim se tornam inofensivos, se já não o eram antes. Fica sempre a interrogação - que fazer deles? Há quem saiba, e parece que combina muito bem com umas cervejas. O mundo tem imenso para nos ensinar. Mesmo na Provincia, e sobretudo no Verão.

É um consolo. O mais, acrescentaria Ricardo Reis, - é nada.

 

"O «Vivas» na R. Vasconcelos e Castro"

João-Afonso Machado, 09.07.20

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Abriu em 1965, sob a batuta do Sr. Isac Vivas, como pensão e restaurante. O que fazia todo o sentido porque – os mais velhos estarão lembrados – ali, na Rua Vasconcelos e Castro, estacionavam as caminhetas oriundas de todos os pontos cardiais. Chegavam de Braga, de Guimarães, do Porto, de Santo Tirso, da Póvoa de Varzim… Ou para lá se dirigiam, e em Famalicão carregavam e descarregavam. Na dita artéria ou na vizinha Alves Roçadas. Por isso, a animação constante nestas bandas, com as muitas empresas de camionagem a marcar garrida presença: as do Abílio (a marca famalicense), do Marinho, do João Carlos Soares, a Pacence, a Ferreira das Neves… Haveria esperas, atrasos, a fome do almoço, pernoitas, até. Para tudo isso, o Vivas  chamava, convidava, ali ao lado, mesmo à mão de semear.

Tudo mudou. Veio a “Central”, vieram os autocarros, muito menos chocarreiros, corredores de longas distâncias, não raro de vidros fumados, já não há janelas que se abram, nem cabeças de fora num último adeus. Muito menos bagagem empoleirada no tejadilho daqueles foguetes de auto-estrada. A Rua Vasconcelos e Castro esmoreceu, perdeu movimento, e o Vivas teve de se adaptar. Transfigurou-se em café. E assim continuou vivendo, agora já na idade dos 55 anos.

Em 1994, entretanto, faleceu o Sr. Isac Vivas. Os filhos prosseguiram o negócio. Talvez, no ramo, o mais antigo de Famalicão.

Mas não é só. O Vivas soube manter, até hoje, quase tudo do antigo e saudoso café. Ali se regista o totobola e o euromilhões, ali se compram raspadinhas e se sonha com fortunas fáceis e repentinas. Ao balcão, enquanto o Sr. Carlos manipula a maquineta, os clientes numa ânsia de casas novas, da piscina, das viagens, do Ferrari. Ou talvez apenas de uma vidinha mais folgada, com nada de ais! e ralações.

No Vivas se lê o jornal ou toma uma meia de leite a empurrar a torrada. Demorando a manhã inteira, sem pressa, contemplativamente. De portas amplas para a rua, ainda ali se fuma um cigarro e se assiste e discute acesamente o futebol. No Vivas, os ecrãs são vários e tamanhões, apontando em simultâneo a muitos continentes e campeonatos.

Só agora, com este diabo da pandemia, o Vivas fechou temporariamente o seu bilhar. Um snooker, ainda de muitas tardes de uso e disputa. Mas continua com o que eu já considero uma arte, um requinte, algo difícil de encontrar por aí – uma boa caneca, fresquinha, de cerveja de pressão.

São assim os quietos momentos passados no Vivas, de olhar no passeio onde andarilham memórias antigas; ou lendo o jornal, ouvindo novidades que surgem aos soluços, sem altura certa, ora vindas daqui, ora de além; ou, quando não, assistindo a uma empolgante partida de futebol. Agarrando a caneca pela asa, como há décadas nas cervejarias do mundo académico. Sorvendo mais um gole como se me espreguiçasse até esses anos já tão longínquos. Impera a calmaria, o mundo perdeu subitamente a pressa. Ressalvando o cliente de quem se ouve a voz, convicto a tentar a sua sorte nos milhões…

 Aconteceu até um dia ali realizar parcialmente esse belo sonho de uma fortuna rápida – comprei uma raspadinha e ganhei vinte euros!

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 09.JUL.2020)

 

 

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