"Memórias do cárcere" - III
A liberdade estava por horas e o carcereiro resolveu-se a uma breve prelecção sobre os nossos deveres de cidadão. A manhã era húmida, cacimbada, desagradável de todo, mesmo a pedir nos abrissem os portões, enfim.
- Que o mundo estava diferente - dizia ele, o carcereiro. Que não podíamos aproximarmo-nos das outras pessoas... - ?!?!?! - E era obrigatório o uso de uma máscara na cara.
Bom, quanto a essa prática, muitos estavamos já familiarizados (pela minha parte, devo esclarecer, abandonei-a depois do tempo das brincadeiras do Zorro e do Tonto). O problema da aproximação ao próximo era mais complexo, sobretudo para os colegas carteiristas.
Mas o carcereiro não era homem merecedor de grande confiança. Treslia, inventava, titubeava, sempre numa vozinha ténue, assustadiça. Tinha uma estranha, comprometedora, paixão por lesmas, carochas, aranhas, toda a bicharada imunda que povoava as pedras escorregadias de paredes e chão dos corredores da prisão. Dos mais antigos, quase todos juram que o carcereiro conhecia essa parasitagem um por um, e a cada atribuiu um nome próprio. Nome de gente! No mais, é um inspirado cagarola, o carcereiro.
- Ó Sr. carceireiro, anda aqui um morcego! - ouvia-se de uma cela. - Na China parece que acompanha muito bem a caldeirada de pangolim... - ouvia-se de outra. E o homenzinho de voz ténue nada dizia, tomava cores de pânico e refugiava-se no seu cúbiculo. Em noites dessas, fumávamos à vontade e até jogávamos à batota.
Mas a hora de saírmos chegou por fim. Esquecido das recomendações do carcereiro, dirigi-me a um transeunte, que de máscara e luvas calçadas fugiu espavorido, os olhinhos dele, muito rotativos, correndo à frente com se gritassem por socorro. Não se viam autocarros, gente, qualquer cãozito... Até que chegámos à Alameda, e aí sim! Camionetas por todo o lado, uma fartura de gente conversadora e animada, muitas bandeiras. Aos magotes, nos passeios, no meio da rua, até se ouvir no microfone uma voz autoritária, ordenando a formatura. Ei-los então, essas centenas de paisanos, dispostos militarmente, à distância regulamentar.
Foi o nosso primeiro espectáculo depois da liberdade - uma parada norte-coreana em Lisboa.