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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Rui Zink, o inesperado companheiro de luta"

João-Afonso Machado, 12.03.20

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A vinda recente de Rui Zink a Famalicão foi tudo o que de melhor podia acontecer ao nosso propósito – o da Casa da Memória Viva – para, palpavelmente, expor ao público o drama das vítimas da demência, os remedeios (enquanto faltam os remédios) de que nos havemos de valer no combate a esses males.

Zink, escritor, chegou cá com o seu novo livro (da Porto Editora e com a colaboração ilustrativa de Paula Delacave) intitulado O avô tem uma borracha na cabeça. Como trabalho apontado aos leitores mais jovens, é uma lição; para nós outros, mais velhos, talvez mesmo já avós, um alerta. Do ponto de vista gráfico, um recado breve mas incisivo, escrito na mais legível letra.

Acrescente-se ainda, Rui Zink é um entertainer de excelência. Na apresentação do livro, nunca eu vira alguém, por tanto tempo e tão conseguidamente, cativar em absoluto a atenção das muitas crianças presentes. Estabelecendo um diálogo com elas que por vezes extravasaria o âmbito da obra – porém, por todos intervencionado em vagas sucessivas, infindas, de perguntas. Por isso mesmo não me foi possível ficar até ao fim da sessão…

O enredo deste livro é de imediata intuição – a história do neto que, sem as conseguir entender, vai detectando progressivas deficiências cognitivas no avô, seu de sempre companheiro de conversas e passeios. O rapaz agita-se, está em angústia - «As borrachas apagam coisas. E a cabeça do meu avô apagava coisas. As coisas dele. A vida dele». Isto quando o ancião teria sido, até então, ao longo dos seus muitos e muitos dias, um manancial de informações e imagens («Eu cá sou do tempo dos dinossauros!»).

Aflitíssimo com a memória falha do avô, desabridamente em perda, o neto recorre a explicações dos pais, e estes, de modo atrapalhado e renitente, acabam não negando a verdade da terrível e irreversível doença. Inconformado, o rapazito resolve «remendar a memória do avô». E fá-lo pelo desenho, pela escrita, pela recolha de objectos antigos, por tudo que ainda conseguisse agitar as reminiscências do passado que o avô guardasse em si. Concluindo cheio de determinação - «o avô tem uma borracha na cabeça? Pois nós somos um lápis!».

(Uma palavra ainda sobre a ilustração do livro – primorosa! Conseguida entre o desenho e a colagem de fotografias diversas, gravuras, dessas que mesmo para nós marcam o tempo dos avós.)

Em nota final Zink dirige-se aos adultos, a quem decifra a natureza autobiográfica da história. Deste doloroso modo acompanhou os últimos anos de um familiar seu, já incapaz de ler, mas cujo «corpo» ainda sabia manusear um livro. E Rui Zink expõe o seu princípio, o leitmotiv do seu agir - «Ele pode já não ser ele, mas eu ainda sou eu».

Diversas vezes aqui venho escrever sobre a Casa da Memória Viva. Coisas que vou ouvindo nas caminhetas… Desta feita relevo aquilo que foi a vivência de Rui Zink – como também Famalicão se pretende ser (ou ter) - um “alfarrabista”  por amor e saúde daqueles de quem gosta e de ajuda necessitam.

 

(Da rúbrica Ouvi nas caminhetas in Opinião Pública de 12.MAR.2020)