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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Os horrores da epidemia

João-Afonso Machado, 11.03.20

CAVALO DE LAVOURA.JPG

As pessoas de bem, nadas entre os verdes prados e as ribeiras minhotas, fugiriam jamais motorizadamente de qualquer ameaça de epidemia desvastante. Não, o respeito e a saudade da terra-mãe, deixada para trás, reclamam o equídeo, a besta de carga. Essa noite, as lágrimas foram muito mais do que as palavras e, logo ao alvorecer, vim com o cavalo de tiro já sobejamente forrado de ração.

Restava atrelá-lo, carregar o carroção com o mínimo necessário e pôr-lhe a lona da cobertura. E despedirmos-nos do gato, azuladamente a garantir-nos com o olhar, não arredaria pé. Os cães viriam, claro, e sempre nos valeriam em vigílias nocturnas.

Não possuo revólver, uso mesmo suspensórios e um chapéu de palha, e não cesso de rilhar um talo de anis de que faço provisão à noutinha, no quintal do vizinho. Mas trouxe as espingardas, mesmo à mão de semear ficou a minha velhinha pombeira, os percutores como duas orelhas de coelheiro. Felizmente a munição abundava e a cal. 32 entreguei-a à minha Betty - Toma, guarda o último cartucho para ti... - Oh tanso!, mas nós estamos a fugir da maleita, não dos índios. Para que queres o último cartucho?

Não deixava de ter alguma razão, a minha Betty. No entanto, uma debandada desta envergadura sem uns fuzis connosco, seria de todo desprovida de sal. Tal como partir sem um livrito, sequer, do Eça ou do Augusto Cury, sem o fogareiro e uma caixa de fósforos.

E mais: ia eu no primeiro - Eia! - a estalar o chicote, quando a minha Betty se alevantou do banco do carroção a querer saber - Mas, afinal, para onde vamos nós?

Só então ponderámos o nosso destino. Já na rua, espreitando em redor, cercados de casario e casario, sem um nico de tranquilidade no horizonte. Fugíssemos nós dos índios, sempre nos acolheriam em algum fortim da GNR ou dos bombeiros. Mas de um vírus... Não há fechadura por onde ele não entre nem perdigoto que não cavalgue. Mais prudente seria, na realidade, atulhar a despensa, pôr as trancas à porta e as espingardas junto do intercomunicador...

Atravessou-me então a terrível punhalada - E os cães, santo Deus?, como lidar com as necessidades dos cães neste Minho já só verde das alcatifas e dos vasos da varandinha, já só aquoso nas bicas da cozinha e da casa-de-banho?!