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Será o que primeiro ocorre dizer: tão estranhos dias! Todos estes, parecendo uma televisão ligada a debitar um infindo filme de terror, a preceito escolhido para nos tolher o sono. O enredo de um inimigo invisível que, em qualquer esquina, nos pode, de um perdigoto só, condenar ao hospital, a sabe-se lá que mais!
Não durmamos, pois, em cima da realidade. E tratemos de a conhecer bem, o meio ideal de evitar pânicos e superstições. Como estará a pandemia a evoluir em Portugal?
Depois da alarmante notícia do lar de idosos em Cavalões – oxalá as senhoras afectadas recuperem depressa, queira Deus os idosos encaminhados para o Porto vejam o mal passar-lhes ao lado, para susto já têm o bastante – depois desse inacreditável episódio, dizia, a perturbar ainda mais o nosso diário desassossego, creio que os olhares dos portugueses em geral se viram para os números. No momento em que escrevo este texto, pouco antes do almoço, segunda 23, as contas oficiais mantém-se inalteradas em relação ao dia anterior. Nem mais um óbito! Nem sequer um outro contaminado a acrescer à lista dos 1600! O que, sinceramente, me aflige. Fosse essa a verdade! No entanto, é tal a inverosimilhança, a ideia de uma contagem volumosa, trabalhosa, assustadora, prevalece, quase antevemos a Ministra da Saúde com agrafos na boca e medo da reacção das pessoas, as notícias oriundas de Itália e de aqui ao lado, em Espanha, avolumam o pessimismo, apontam caminhos árduos de muitas contrariedades ainda.
Também porque, consta, italianos e espanhóis possuem, outrossim, as suas marginais poveiras e vilacondenses e um domingo solarengo é sempre um convite… Assim ninguém facilita a vida a alguém. Sirvam ao menos os areais mais distantes, a montanha… ou o parque da cidade, despovoado como anda, para uma marchazinha forçada, castigar o corpo é confortar o espírito.
Outro não é o nosso quotidiano. Visto de dentro da minha janela, num breve, muito breve, instante de reflexão, uma experiência única. (Logo depois da reflexão, o incómodo, a irritação…) O dito filme que nos habituámos a pensar, só decorreria na televisão. Não, vivemo-lo diariamente nas ruas quase desertas, num mundo laboral perto da paralisia, em contas sobre a economia nacional de que fugimos a sete pés, basta-nos para já a peste, os cuidados de saúde.
Temos pela frente o fantasma da incerteza. Para quando uma barbearia, ao menos, para cortar o cabelo, aparar a barba? Um nadinha de futebol para entreter? Um café para o encontro com os amigos, três dedos de conversa?
Para quando a mochila às costas, o bloco-notas, a máquina fotográfica e uma viagem algures num mundo desconhecido? Não para tão cedo. E nessa contingência, sem sequer uma biblioteca aberta ao público, vale-nos apenas a ferramenta caseira. Sinistramente, o meu relógio-de-cuco avariou. O silêncio abateu-se sobre uma casa inteira habituada ao matraquear do seu pêndulo no hall da entrada. Insisto, nada sobra para além da ferramenta caseira. Quero dizer, da nossa imaginação extravasando paredes a ver se o tempo acelera um bocado e nos transporta – se possível a todos – para além do pesadelo. Assim termino, com amizade e os meus votos de paz, resistência e saúde muito especialmente para os famalicenses.
(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 26.MAR.2020)