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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Lição das águas

João-Afonso Machado, 31.03.20

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A água vem da mina por um regozito e não há quem a cale, sobretudo no seu perpétuo despenhar, levada nas armadilhas das pedras, lá em baixo no campo.

Assim a água corre e curva, a gorgolejar, parecendo tansa, desprevenida do seu rumo, desconhecedora da lei da gravidade. De tal modo, seria só monotonia -  em vez de melodia e alguma navegação de folhas e pauzinhos na transparência da água, como é e vive, finissima.

Sempre ágil e esperta! Na sua inodora e incolor circunstância se vai toda a insipidez das cosméticas. É um inacabável lavar de caras esfregadas pelos musgos. E por isso, hora após hora, na sua clarividência se desmascaram as expressões e despem as mais dissimuladas intenções.

São um tribunal, uma ópera autêntica no auge da tragédia, são a mais sapiente prelecção, as águas correndo a precipitarem-se do muro. Tomemos assento junto e nada percamos do que ensinam.

 

Com alma e a bolsa resvés

João-Afonso Machado, 29.03.20

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Li em Uma beleza que nos pertence, do Cardeal Tolentino de Mendonça - «Mas a Fé quer-nos assim, o crente é assim: um peregrino com as mãos pobres e vazias e os olhos cheios».

Li, e recordei:

Essa noite chegados a Liverpool, a horas de ninguém senão dos bêbados, - que não digo empestassem as ruas, de onde transbordavam, dada a sua prontidão, o seu esforço em articular palavras a orientarem-nos no escuro, - essa primeira noite foi uma breve cerveja britânica e o quartinho barato do hotel, sem janelas nem luz natural.

Logo pela manhã a cidade corrida a pé, o rio Mersey, Albert's Dock, jardins e monumentos... Tanta a novidade, tanto o mundo e as gentes!

E tudo, afinal, como eu desenhara: a Fé está na inteligência e nos sentidos. A Fé não fica em casa mas vai, - consoante pode, vai, mais não seja em busca dos dizeres melhor construídos, das letras usadas com a propriedade de as fazer fortes e espelhos da realidade.

Liverpool foi um instante, antes do posterior imediato instante. Mas um instante carregado de imagens, uma outra visão do humano formigar, um passo em frente. Acreditar que todos esses passos nos soam na alma e nos despertam o coração, será essa sua transcendência a Fé, seguramente. Produto articulado de motes vividos.

 

"A desoras"

João-Afonso Machado, 27.03.20

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Chegou tarde ao atapetado de amarelos,

roxo, branco, avermelhado,

tantos os elos do mundo renovado.

 

Morou as casas do medo

desprovido de asas

e deixou quedo o instante de partir,

hesitante, a vida toda hesitante e esquiva,

hirta temerosa de se ir.

 

Enquanto nesse mundo cá fora,

um manto de gentes saindo embora,

 

o colorido regressando em repentes,

o eterno contrário de tão sempre

negro e mudo, o seu nefando

sacrário.

 

 

"Dias nunca imaginados"

João-Afonso Machado, 26.03.20

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Será o que primeiro ocorre dizer: tão estranhos dias! Todos estes, parecendo uma televisão ligada a debitar um infindo filme de terror, a preceito escolhido para nos tolher o sono. O enredo de um inimigo invisível que, em qualquer esquina, nos pode, de um perdigoto só, condenar ao hospital, a sabe-se lá que mais!

Não durmamos, pois, em cima da realidade. E tratemos de a conhecer bem, o meio ideal de evitar pânicos e superstições. Como estará a pandemia a evoluir em Portugal?

Depois da alarmante notícia do lar de idosos em Cavalões – oxalá as senhoras afectadas recuperem depressa, queira Deus os idosos encaminhados para o Porto vejam o mal passar-lhes ao lado, para susto já têm o bastante – depois desse inacreditável episódio, dizia, a perturbar ainda mais o nosso diário desassossego, creio que os olhares dos portugueses em geral se viram para os números. No momento em que escrevo este texto, pouco antes do almoço, segunda 23, as contas oficiais mantém-se inalteradas em relação ao dia anterior. Nem mais um óbito! Nem sequer um outro contaminado a acrescer à lista dos 1600! O que, sinceramente, me aflige. Fosse essa a verdade! No entanto, é tal a inverosimilhança, a ideia de uma contagem volumosa, trabalhosa, assustadora, prevalece, quase antevemos a Ministra da Saúde com agrafos na boca e medo da reacção das pessoas, as notícias oriundas de Itália e de aqui ao lado, em Espanha, avolumam o pessimismo, apontam caminhos árduos de muitas contrariedades ainda.

Também porque, consta, italianos e espanhóis possuem, outrossim, as suas marginais poveiras e vilacondenses e um domingo solarengo é sempre um convite… Assim ninguém facilita a vida a alguém. Sirvam ao menos os areais mais distantes, a montanha… ou o parque da cidade, despovoado como anda, para uma marchazinha forçada, castigar o corpo é confortar o espírito.

Outro não é o nosso quotidiano. Visto de dentro da minha janela, num breve, muito breve, instante de reflexão, uma experiência única. (Logo depois da reflexão, o incómodo, a irritação…) O dito filme que nos habituámos a pensar, só decorreria na televisão. Não, vivemo-lo diariamente nas ruas quase desertas, num mundo laboral perto da paralisia, em contas sobre a economia nacional de que fugimos a sete pés, basta-nos para já a peste, os cuidados de saúde.

Temos pela frente o fantasma da incerteza. Para quando uma barbearia, ao menos, para cortar o cabelo, aparar a barba? Um nadinha de futebol para entreter? Um café para o encontro com os amigos, três dedos de conversa?

Para quando a mochila às costas, o bloco-notas, a máquina fotográfica e uma viagem algures num mundo desconhecido? Não para tão cedo. E nessa contingência, sem sequer uma biblioteca aberta ao público, vale-nos apenas a ferramenta caseira. Sinistramente, o meu relógio-de-cuco avariou. O silêncio abateu-se sobre uma casa inteira habituada ao matraquear do seu pêndulo no hall da entrada. Insisto, nada sobra para além da ferramenta caseira. Quero dizer, da nossa imaginação extravasando paredes a ver se o tempo acelera um bocado e nos transporta – se possível a todos – para além do pesadelo. Assim termino, com amizade e os meus votos de paz, resistência e saúde muito especialmente para os famalicenses.

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 26.MAR.2020)

 

 

"Memórias do cárcere" - II

João-Afonso Machado, 24.03.20

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Manhã de entusiasmada palração entre os prisionários. Enfim um tema salutar, o futebol. Discutiam-se os maiores cérebros de tão umbricada ciência.

- Artur Agostinho! - disparei eu à toa, ávido da conversa de que a reclusão nos priva. Mas os presentes olharam-me logo, reparei bem, compadecidamente, com ternura até, fitos nas minhas alvas barbas. - Ribeiro Cristóvão! - ainda emendei, a julgar-me actualíssimo, um pós-moderno, fiel ouvinte dos relatos da Renanscença.

Não houve como não suportar a gargalhada geral. Uma avalanche das perigosas, muito cuspidas. E um nome ecoou na minha vergonhosa ignorância - Pedro (edro, edro, edro...) Guerra (erra, erra, erra...) - Pedro Guerra, então, a festejada celebridade, para mim, sem desculpa, totalmente desconhecida.

Sucumbido e calado, fui aprendendo. - Pedro Guerra, o guerreiro! - O homem dos mil saberes, o douto e o profeta; o arquivo dos mil milhares de dossiers; o arbitrólogo, como mais ninguém conhece os árbitros em Portugal; enfim, o mago da Comunicação Social desportiva.

Em suma, o cientista e o polemista. O mais humilde catedrático, o conciliador, de todos o amado. O amável. Gloriosamente, uma estrela da selecção nacional da Damaia. Expatriado político, benfiquista por adopção e do coração.

E sobretudo uma saudade dos velhos tempos de liberdade, em que os canais televisivos, sempre pluralistas, falavam de tudo o que fosse futebol - em simultâneo - e de nada mais, epidemias incluídas.

 

"Memórias do cárcere" - I

João-Afonso Machado, 22.03.20

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Terríveis, estes primeiros dias entre as grades. Demorados, eternos, a arrastar as horas numa dor de grilhetas andantes no empedrado das vias. Deixando bem viva a carne dos homens livres mas injustiçados. Tudo é diferente: e, do menos mau, as esperas nas filas à porta do supermarket, por um pouco de alimento. É obrigatório, cozinhar na cela, essa uma ciência de quase ninguém. Pessoalmente, rejeito, em absoluto, o cheiro a fritos, a inglória tarefa de lavar depois a panóplia instrumental da cozinha. Assim me foi distribuída, misericordiosamente, uma refeição ultra-congelada de arroz de pato.

O tal microondas fez o resto. Imperfeitamente, acrescente-se. O alimento veio à mesa (de frio mármore, antes o conventual granito...) como numa manhã de inverno, cheínho de bocados de gelo, foi necessário - Carcereiro, quer uma rebelião já, sanguinária, arrasadora? - foi necessário, dizia,  mandar o prato para trás até ele, enfim, regressar mastigável.

Entrementes, pouco sabemos do que vai lá fora. Consta, El-Rei está bem, e com Ele, a Família Real. Assim sendo, a Nação não perecerá ainda...

No mais, serviram vinho e, depois, maçã reineta. Para já, pese embora o tormento, a fome suporta-se. Lá vamos sobrevivendo.

Mas, ficou-me a ideia, estou para saber se comi arroz de pato ou arroz desse outro aquático açoreano, o atum.

 

Primavera?

João-Afonso Machado, 21.03.20

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Se houvesse ainda Primavera, como sempre houve, ela teria chegado por agora. Mas um mundo parado não é digno de novas estações, senão de meses negros, meses de jamais antes, quando muito soprados por brisas enganadoras de cores que ficaram pelo caminho. E a vida transformada num céu de saudade, lá no alto, e de temores cá em baixo. À conta agora de epidemias e contaminações em cada esquina dos nossos passos.

E chove. Perdeu-se a esperança de que cesse de chover. Ficaram as poucas memórias sobrantes de antigas alegrias.

As vozes calaram. Sequer querem uma prece juntas. Uma viagem, um dar as mãos, um bocado inspirado de novas visões. Tanto o tempo perdido, não existe uma primavera de janelas fechadas e aves mudas. Até que as ruas voltem a ser gente, as horas chicotar-nos-ão como num castigo antigo e infamante. Para onde levou o Inverno os telhados que sempre me prometeram a chegada da Primavera?

 

A ameaça

João-Afonso Machado, 19.03.20

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Foram uns tantos dias. Falava-se, comentava-se, estava para chegar ruindade das grandes. Muitos eram os que já se refugiavam entre as suas paredes, de olhar nos buraquinhos das persianas, quem viria lá?

Não era de aceitar viver no medo. Ainda menos na subalternidade. Por isso se proclamou livre e independente. E foi aos seus afazeres, como se nascesse outra vez, perseguido embora por esse choro estranho de que foram tantos dias.

Tantos dias lodosamente escorregadios de palavras, repetidas, embrulhadas, sem rumo, tudo querendo, nada contendo. Desesperadoramente insistentes. Tantas horas do mesmo, e um nevoeiro cerrado, traiçoeiro. Conhecia a história do canto das sereias, seguia atento aos sinais. E mesmo na borda do abismo, surgiu-lhe como um semáforo a flor sanguínea, de uma natureza generosa e prudente. Stop!

Deste modo contornou a ameaça. A ruindade era, realmente, das grandes e o estado de emergência foi declarado logo de seguida. Mas já a salvo estava.

 

Quando eu fugi de casa...

João-Afonso Machado, 17.03.20

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... Dei comigo no parque da cidade, aliás repleto de outros fugitivos. E lá congeminei, não uma valente caminhada, mas, tão-só, umas horas ao ar livre - santa liberdade! - sob o arvoredo, de máquina fotográfica em riste a apontar à passarada.

Não fora a mira torta, os muitos botões e a minha ignorância, o sol não se iria embora. Desapareceu, todavia, à conta de tantas funções do aparelho e das saudades de um rolo, as mesmas das canetas, na escrita, sempre bem afiadas e de bica aberta.

Ainda assim houve tempo. Felizmente: as imagens são as ideias e estas a nascente das lições. É como eu vivo.

Por isso, dominada a besta, surgiu então a tordeia. A uma razoável distância do tiro, que não saiu completamente mal. Poisada num galho, serena mas atenta, a tordeia ofereceu-me o corpo e encheu a minha alma de claros, inequívocos, dizeres. Recados breves, rectilíneos, simplesmente sábios.

Quais fossem eles, o mundo é isto: uma doença, a ameaça de uma carga de chumbo, dependendo do alvo. (Li-lhe nos olhos um certo desprezo pelos humanos medos...) E nem vale a pena tentar modificar esse mundo, vale somente aceitá-lo como é. Defendendo-nos, sem nos matarmos com a defesa.

Tudo explicado, a tordeia foi-se. Fugindo corajosamente sem meias palavras. Fugindo, apenas. Num alarido de asas a bater porque cumpriu a sua vontade - estava no seu direito - e, sorte dela, não se lhe atravessou uma espingarda na frente. Dera a sua lição, a grande e tão honesta tordeia! 

 

A rua de nunca mais

João-Afonso Machado, 16.03.20

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Daquela rua, uma exposição de jardins e cores, quase escrevi um dia um romance. Grosso volume, o original lavrado na caneta mais inspirada do meu coração, e passeios largos, calados como lagartos ao sol, a perderem-se na linha do horizonte. Era um tempo de sonhos primaveris, dos tais sempre prenhes de promessas e projectos.

Uma vez, aconteceu, perdi todas as folhas já escritas. Ocorrera uma tempestade, o galope de uma cheia, nada foi possível salvar. Houve mesmo quem ficasse em casa doente, transtornado.

E a rua emudeceu, de costas voltadas para si mesma. Enfiou-se num casulo, a cabeça escondida entre os seus passeios, agora frios, agrestes. As árvores, os canteiros, em cada jardim tudo regrediu à invernia. Pelas quatro da tarde, qual Cristo na Cruz, a rua exalou o seu último suspiro e enegreceu como uma múmia, mas subitamente, ameaçadoramente.

Esqueci o romance, não escrevo ficção de terror. E a rua lá ficou, desvitalizada, remoendo desgraças suas. Olhei-a depois, devo dizer, com alguma comiseração. Manter-se-à um ideal inesquecível, por isso mesmo, jamais um lugar de passagem.

 

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