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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

O "galheiro", um auto-de-fé

João-Afonso Machado, 26.02.20

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Nem hábitos albinegros, nem sambenitos. Mas muito povo, quase na primeira hora quaresmal. A pira está pronta, durou dias a amontoá-la com as pás dos tractores, toda a ramagem colhida na freguesia - mato, vides secas, silveiras, codeços... No breu da noite, ouve-se agora o gemido lúgrube de um búzio tocado por alguém. Está criado o ambiente. Fradelos prepara-se para supliciar o seu Judas.

Todos os anos é esta a altura escolhida. Judas, conformado, mantem-se quedo no topo da lenha, é tal a sua eternidade, a de uma morte assada e sempre repetida no correr dos séculos. Vestindo os trapos que os da terra lhe atiraram à cara, só para não provocar mais escândalo. Um brasume giratório espalha petardos e dá o sinal do início do padecimento. De mais este.

Depois chegam os carrascos munidos de tochas. Em poucos minutos as labaredas levantar-se-ão no céu, iluminam o rio e crepitam ante o murmúrio de muitos, um brado geral de nota.

Não basta. Içado por cabos, um outro Judas parte do solo a reforçar a matança. Tudo longíssimo do cheiro da carne esturricada; tudo à medida de um sentido de justiça caminhando ao longo dos tempos - Judas, o traidor, é o personagem de uma vingança, fria não fora fogo arrefecido na barraquinha das cervejas, ali ao lado.

Já a fogueira se acalma e o céu rejubila em foguetório colorido. É o destino de Judas: para todo o sempre alegrar o povo com o seu sofrimento. E em tal força que as tabuletas ao pescoço do expiado se dispensam. Queimado em estátua, aviltado, mas nunca prescindido...

Em Fradelos, no termo de Famalicão, não lhe chamam auto-de-fé: simplesmente o "galheiro", uma construção das gentes, o seu labor por essa imensa elevação de cinzas que o dia seguinte já esqueceu.

 

Um português em Aberdeen

João-Afonso Machado, 24.02.20

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Urgia tomar de assalto aqueles muros, viseira em baixo, a espada em riste e um salto épico, um cavalo de mitologia a quem, por mera vingança do cavaleiro vencedor, seria dado por pasto o relvado todo dos vencidos, a suave fragância das pétalas de centenas de rosas isabelinas, directamente oriundas dos milagres portugueses. Isto congeminava ele, aliás apeado, dono nem sequer de um burriquito de moleiro, às voltas com dois pints, a fazer-lhes o câmbio, - dois pints igual a uma girafa - e resmoneando sempre.

Foi a relva e a sua Rainha Santa, uma vez mais a despejar canteiros do seu colo, que o tranquilizaram. Poria de lado a medieva, barulhenta armadura, sempre enferrujando tais lides de paixão. Não, insinuar-se-ia, penetraria o temível baluarte na beatitude de um jardineiro. Com toda a astúcia dos Robin Hoods e Little Johns.

E a ideia configurou-se-lhe num instante. Roupa velha era o que não lhe faltava. Destacava mesmo o velho chapéu de palha já podre do desuso nestas praias cinzentas e ventosas. Enfiaria os dedos em terra de vasos e trá-los-ia à superfície de unhas negras como a capa de um presbítero. Durante uns dias não se lavaria, a ajuntar crostas e a olear o cabelo. Nem se barbearia. Trataria toda a gente por "bocê" e cuspiria para as mãos, agarrado ao sacho, mais uma ou outra escarreta no chão. Cobraria baixo, que esta malta é ancestralmente sovina. E, assim andrajoso, conseguiria decerto a almejada entrevista.

Seria quando ela se chegasse com instruções para a limpeza dos canteiros e as podas das sebes. Numa envolvente mudança de voz dar-se-ia a conhecer, pobre mas académico, um manancial de palavras corteses, meigas e meridionais, a saltitarem-lhe do coração para a boca. Deste modo comprovaria a boa essência das longas e já antigas trocas de olhares entre os dois.

Depois... bom, depois seria a hora saborosa - finalmente! - de apunhalar a governanta e o chauffer. E de ao fundo do quintal, sob a ameixoeira em flor, plantar muito na terra os seus restos, previamente retalhados. Juntinhos todos no mesmo embrulho, como embrulhados andavam ambos, raça de escoceses puritanos!, há décadas e décadas, o bairro inteiro a sabê-lo, somente Miss Marple não, perenemente vigiada, manipulada por tanta castidade só casca.

 

Reformada

João-Afonso Machado, 21.02.20

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São os bancos (de assentar) a essência dos jardins públicos. Postos no final no meu caminho de trabalho para sustentar a vida. Olha para mim, chapéu à banda, farta de nada fazer, imensa é a colecção de coisinhas a mastigar os minutos. Daqui, o caminho diz cama, por acaso hei a TV Cabo, um comando que comanda as regras tristes do meu entristecimento, até ao sono de salvação.

Malditos os dias findos da minha vida na fábrica! A deixarem-me a sós com a habituação ao nada ou quase. Indemnizada por mim mesma, velha sem homem mas a ombrear com angústias.

Os meus sonhos são exactamente o impossível. Depois de tantos anos... (não quero, mas é), já depois des tantas esperanças derruídas à bomba, é o parque, é o oxigénio, que não me lança ponte abaixo.

Vale-me a ave canora. O imprevisivel. O aiioooó! Uma flausia ora agora, ora depois - e a gente espera essa, depois longas são as tardes..., a acordar-nos para um breve momento de  - Sim, não morri!

Há quem diga, era melhor a "solitária". Contam-me, tratava-se de uma prisão. Não sei. Sei somente, um pavão, de lenço tricular no bolso do casaco e muitas cores na gravata, um galã a assobiar assim, foi a minha perdição. 

Levou-me a inocência, escravizou-me à vida nos jardins. Aiioooó! Ora aqui, ora acolá, sem amanhãs, anseio o fim seja um sustenido galopante.

 

"Portuguesa - outra versão do hino"

João-Afonso Machado, 20.02.20

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Vão lá cinco anos abri ao público, em Antas, o meu soberbo estabelecimento – o meu escritório, o lugar das minhas letras, pobrezinhas sejam elas, sempre são as minhas, não as copiadas dos outros. As letras de um homem que não sabe cozinhar (mas sabe caçar…), um primitivo para quem é muito difícil acertar com o ovo na frigideira e estrelá-lo depois.

Nesta angústia de sobrevivência salvou-me o restaurante defronte ao meu apalaçado tugúrio – o Portuguesa.

Cinco anos passam a correr. De início, arranjar uma mesa não constituía grande problema: a gente chegava e sentava-se – pronto! Pegava na lista e escolhia. Com todo o vagar do mundo, mirava-se a vitrina do peixe, tornava-se ao menu, outras duas ou três perguntas da praxe e a escolha, finalmente, - o robalo, a dourada, a cavala ou o sargo… Peixe fresco, grelhado, bem acompanhado de batatas a murro e verduras com força. Uma vez por outra, o lombo assado, o cabrito, a feijoada à transmontana, o arroz de pato… E sacadas inteiras de sardinha, no tempo dela.

Na verdade, na minha chegada a Antas, do Portuguesa sei apenas que o proprietário, o Sr. Martinho, explorava também uma peixaria. Daí a ligação directa, que ainda agora se mantém, entre a Póvoa de Varzim e o restaurante, cimentada todos os dias em idas ao peixe, pela madrugada, decerto ainda o sol nem se lembrou de pestanejar.

(Entre duas espinhas a pôr de lado, pense-se um pouquinho no peso de um dia, e mais outro e mais outro… - a levar, a horas tais, a furgoneta por tantos e tão repetitivos quilómetros! Para voltar a tempo de um bom almoço com o bicho fresquinho!)

Certo é, o movimento das refeições foi crescendo, a clientela sempre a aumentar, reconheço, a contragosto do meu natural egoísmo, da minha apetência pelo silêncio que é o fundo negro de onde emergem todas as possíveis conversas.

Mas jamais abandonei a regularidade das minhas visitas ao Portuguesa. Essa minha fidelidade, irmã do meu advento a Antas. Quantas vezes, até para um lanchinho só!... E, entretanto, fui-me aventurando na alheira, na massa com vitela estufada, no salmão ou no peixe-espada negro. Fui variando, - nos vinhos também.

E criando amizades. Sobre elas sempre hei-de realçar a pessoa do Sr. Lima, recentemente retirado, uma voz de todos os dias em momentos conturbados de doença e morte de pessoas muito minhas próximas. Tenho, verdadeiramente, saudades do Sr. Lima, da sua prontidão em colocar na minha mesa as minhas usuais vontades – o jarro de verde branco, a sobremesa preferida, o excelente bolo de bolacha. Oxalá o Sr. Lima, pese embora a idade e a saúde menos afinada, esteja bem, descanse em casa e apareça quando calhe, para dois dedos de bate-papo.

Indo ele, ficaram os dois funcionários, o Sr. António e o Sr. Inácio. Além do mais, dois craques no futebol filosofado, porque os jantares no Portuguesa decorrem frequentemente à luz de jogos empolgantes na televisão. Já na hora do almoço a sua atitude não pode ser tão meditativa, semelhante a avalanche da freguesia. Então, vai tudo por frases meias – Frango! – Vinho? – Mousse

Aos fins-de-semana lê-se o jornal à mesa. E, em qualquer maré, ali se come o melhor prego no prato de todo o Minho. Com batatinhas fritas às rodelas. Quiçá o melhor da nossa Nação, ela inteira! É o que este “vizinho” (ganhei, entrementes tão honroso tratamento – o “vizinho”)  amiúde pede, à conta dos seus dentes que já só vão com carne da mais tenra…

 

(Da rúbrica Ouvi nas caminhetas in Opinião Pública de 27.FEV.2019)

 

Megalomanias

João-Afonso Machado, 18.02.20

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Quando poisou, não muito distante, eu qui-lo um condor. No cimo de qualquer cordilheira andina, nada eram ramos secos, antes pedra nua, possivelmente manchada de neves.

Faltava a demonstração da espantosa envergadura de asas do monstro. Faltava um eclipse solar por elas provocado e um anho a imolar à voracidade da ave, sangrando pendurado nos ares pelas suas garras. Faltavam os gritos de horror, uma carabina, a chusma de aldeões armados de varapaus, era deles a carne do sacrificado.

Uma tarde ensolarada de ideias sentadas no banco do parque, a folhear as páginas de Tintin em perigos peruanos, a caminho do Templo do Sol. Serranias esgotantes, selvas equatoriais, avalanches assassinas, medonhas amplitudes térmicas e grutas de paredes fosforescentes - tudo irradiando desse estranho passarão, cá recém-chegado, empoleirado no cimo da minha vontade que, de resto, um beijo e um abraço, um abraço e um beijo (e por aí fora), tudo transformaram em palavras de histórias e comentários sobre peixinhos, afinal o dia-a-dia de um simples corvo-marinho como eu.

 

Momentos

João-Afonso Machado, 16.02.20

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Senti bem a incredulidade das águas frias, tentando eu represá-las nessa codea de tarde. As calças, por isso, arregacei-as até aos joelhos, porque me disseram assim ser o modo indómito de querer e conseguir. E os calhaus foram-se acumulando, rolados, chatos, musguentos.

A Natureza, incapaz de perceber tolhendo os seus passos sustaria o Tempo, e esse o meu objectivo, encharcou-me as pontas do cachecol, enlameou as minhas vestes, e  para tanto criou barriga acima das pedras, rindo sempre, espumando-se de riso entre os dentes - que eu jamais trataria, Natureza, com massa ou outro vedante qualquer.

E a tarde, enfim, foram essas duas velocidades: enganosa, a primeira, semelhando ser nada mais do que um lago (a afogar-me o cachecol...), turbulenta a seguinte, salivosa, cuspinhenta, ágil como as cobras, a esquivar-se por todos os interstícios de um granito afinal não eterno.

Um granito que o Tempo, implacável nestas horas de pouco firmes ponteiros, despacha, empurra e, com desprezo, trata por "momentos" - tardes inteiras, momentos apenas.

 

Hoje, um dia triste cá na terra

João-Afonso Machado, 12.02.20

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A equipa viajou até Lisboa onde foi derrotada no último minuto do jogo. A equipa encheu o peito para vencer o Benfica aquando da sua recepção em Famalicão. Empatou. Porque lhe subtraíram um golo mal anulado. Deste modo a meia-final não seguiu para bingo.

É assim a vida longe das grandes máquinas ditas desportivas. Muito carregada de ilusões, amargurada por outras tantas desilusões. O jogo de ontem traduziu com exactidão a velha realidade da águia imperial trucidando os pequenos reinos livres que não prescindem da sua liberdade.

(Uma águia - imperial - que vem voando da Roma antiga, em círculos sobre o poderio germânico e a imensidão russa, com uma cria futebolística abandonada em Benfica.)

A hoste azul e branca famalicense fez o que pode. A lembrar os velhos ricos-homens de Ribadouro, ou mesmo as populações minhotas sublevadas... contra a águia de Napoleão.

No camarote de honra o tirano Vieira protestava, no maior desprezo pelo seu homólogo e anfitreão. Por pouco, um adepto não lhe pôs as mãos no gasganete - não fora a intervenção do dito anfitreão e homólogo...

Perder com mais dignidade não é possível. Em outra batalha contra as oligarquias que são as repúblicas cesaristas. Pelas nossas ruas não corre vergonha alguma: somente tristeza e talvez alguma revolta, afinal pelos dedos de quem o sonho não se tornou realidade?

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 11.02.20

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A praia é de todas as crianças do mundo que, aliás, são só duas - V e B, ou B e V, eventualmente, mais a norte. Era delas essa miragem e todos os anos corridos sobre dias que não mais me pertencerão. Haja a sapiência de entender, e escrever em azul leve, a brincadeira imensa de uma vida sepultada num sorriso eterno de saudade.

 

Um sapo na passerelle

João-Afonso Machado, 09.02.20

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Estranha manhã de vésperas primaveris. Sobre a humidade, sobre o viço da relva, num verde calado e quieto, o corpo estendido e as pernas dobradas, o pé no ar tremendo como uma negaça. A ribeira corria perto.

Não era maré de visões aladas. A ideia nascera muito cedo, impaciente do sol, do despertar dos répteis e anfíbios. Mais precisamente, era o velho, pesadão, sapo rugoso - já alguém o vira por ali - que a espicaçava, esse buraco aberto no seu álbum. E por ele aguardava, a máquina fotográfica a postos, toda a ciência da espera concentrada no momento adivinhado.

Valeu o esforço. Num tempo não somado, no mesmo plano da sua horizontalidade, ponderando cada movimento das patas, o bicho descomunal, vegetativo, uma rã disforme, marciana, inofensivamente vinha de lá, a boca um risco encurvado, o olhar como dois faróis de nevoeiro. A máquina disparou, disparou, o sapo caminhava sempre adiante. Decerto sabedor do seu destino, incapaz de manobras rápidas e desesperadas, convivendo com a morte na resignação de uma sua parente mais chegada.

- É desta que vou? Chegou a minha vez?

- Não, bicho, faz pose, alevanta o espírito, dá-me apenas uns retratos.

- Nem sequer por troca com um cigarro aceso entre as minhas beiças sempre fechadas?

- Qual cigarro! Vá, negreja-me essa vista, faz como se eu não estivesse aqui...

O sapo deu o melhor de si. Quase emagreceu. Por segundos manteve a pata no ar, como um elefante ensinado, perdigueiro de moscas. Sujeitou-se a serem-lhe contadas todas as tonalidades das rugas. Até mesmo que uma mão bem intencionada lhe medisse a moleza do ventre.

Seguiu, enfim, o seu caminho. Orando por outros encontros assim pacíficos como este. E guardando, preciosa, na sua audição, a voz levezinha que, uma vez na vida, o afastara do seu ancestral medo dele próprio, da sua fealdade.

 

"Um rio quer-se com peixe"

João-Afonso Machado, 06.02.20

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Chove que Deus a dá. Aqui em Famalicão sem dramas, o Pelhe não tem a força das catástrofes, nem sequer de um breve momento de tensão, coisa pouca, uma inundação, o apelo aos nossos bombeiros. Às vezes, cogito, a nossa terra é morna de acontecimentos, faz-nos falta o recurso a um bote salva-vidas, a qualquer emergência avivando os dias – contando, é claro, pessoas e bens não sofressem as consequências da intempérie.

Famalicão não dispõe, infelizmente, do que a marque na sua identidade. Também não é acastelada… Nem sede de bispado… É o que somos e temos de nos haver. Criemos assim a nossa história. In casu, a do secular Pelhe.

Vão lá muitos anos, entrevistei para um semanário local o saudoso Sr. José Brandão, o proprietário da então Quinta da Maia. Em tudo nele eram saudades.

Saudades políticas vestidas de azul e branco. Saudades das suas pescarias às trutas na ribeira que vem de Brufe e desemboca no Pelhe. Saudades de águas limpas, límpidas, povoadas de peixe. Tudo isto umas décadas antes do parque da Devesa, a vincar a minha ignorância sobre o pré-diluvio da poluição. Quem me ia dando nota de como corria a pesca por cá era o Sr. António Brandão, também de estimada memória, o meu armeiro e o homem que tudo sabia sobre os rios minhotos. – Sr. Brandão – perguntava-lhe eu, amiúde, - Para uns peixitos, coisa próxima, o que me indica?....

Eram tempos em que, sem óculos, dava o nó ao anzol e punha o isco – o morcão, ou o asticot, dito de forma mais fina. O qual o amigo Sr. Brandão me fornecia, guardado vivo em arca frigorífica. Estou a falar, para quem não saiba, de larvas da mosca vareja.

E um dia, por então, - No Pelhe estão a sair uns escalos de bom tamanho – confidenciou-me o Sr. Brandão. - Pedi-lhe mais desvendasse o segredo. Eram algures, já não sei localizar onde, ainda em Gavião, a sua freguesia, sob uma ponte, entre o casario. Em uma tranquila tarde para lá me dirigi com os meus dois filhos, um balde e, além do material necessário, uma cana de canelon, então um peça de “museu”, compra da minha juventude no Sr. Freitas («de baixo») pela exorbitante quantia de 240$00!

Encontrámos uma represa, o peixe entalado, quase enlatado, decerto esfaimado. Lembro bem, o carro estacionado, um silêncio cúmplice, as casas debruçadas sobre o rio… O meu temor, estaríamos a cometer alguma ilegalidade?... Mas os escalos chamavam por nós e, num instante, o balde enchia-se deles, vivinhos, - opulento bródio - a rabiar e com destino marcado, o grande lago da Casa dos meus Maiores.

Prodigiosa pescaria! Grande proeza para a miudagem! Os escalos postos no lago, regalados por vasta nutrição, cresceram, encorparam-se, já falavam de igual para igual com as carpas e similares. Somente não se adaptaram, quero dizer, no seu ADN viajavam outras correntes, sem fim à vista, para os indispensáveis efeitos reprodutivos. Os que não pereceram às bicadas das garças morreram de morte natural, levados pela idade, - jamais mercê da poluição.

Assim este apontamento serve as recordações dos meus queridos filhos, então crianças, hoje homens andarilhando pelo mundo. E serve também para a interrogação que me atormenta: onde estão os peixes (pardelhas e góbios) há pouco atrás tão visíveis das pontes do parque da Devesa? Porquê o actual silêncio piscícola do Pelhe?

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 06.FEV.2020)

 

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