O "galheiro", um auto-de-fé
Nem hábitos albinegros, nem sambenitos. Mas muito povo, quase na primeira hora quaresmal. A pira está pronta, durou dias a amontoá-la com as pás dos tractores, toda a ramagem colhida na freguesia - mato, vides secas, silveiras, codeços... No breu da noite, ouve-se agora o gemido lúgrube de um búzio tocado por alguém. Está criado o ambiente. Fradelos prepara-se para supliciar o seu Judas.
Todos os anos é esta a altura escolhida. Judas, conformado, mantem-se quedo no topo da lenha, é tal a sua eternidade, a de uma morte assada e sempre repetida no correr dos séculos. Vestindo os trapos que os da terra lhe atiraram à cara, só para não provocar mais escândalo. Um brasume giratório espalha petardos e dá o sinal do início do padecimento. De mais este.
Depois chegam os carrascos munidos de tochas. Em poucos minutos as labaredas levantar-se-ão no céu, iluminam o rio e crepitam ante o murmúrio de muitos, um brado geral de nota.
Não basta. Içado por cabos, um outro Judas parte do solo a reforçar a matança. Tudo longíssimo do cheiro da carne esturricada; tudo à medida de um sentido de justiça caminhando ao longo dos tempos - Judas, o traidor, é o personagem de uma vingança, fria não fora fogo arrefecido na barraquinha das cervejas, ali ao lado.
Já a fogueira se acalma e o céu rejubila em foguetório colorido. É o destino de Judas: para todo o sempre alegrar o povo com o seu sofrimento. E em tal força que as tabuletas ao pescoço do expiado se dispensam. Queimado em estátua, aviltado, mas nunca prescindido...
Em Fradelos, no termo de Famalicão, não lhe chamam auto-de-fé: simplesmente o "galheiro", uma construção das gentes, o seu labor por essa imensa elevação de cinzas que o dia seguinte já esqueceu.