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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"A marcha"

João-Afonso Machado, 30.01.20

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Ouve-se ainda o arrastar de tantas grilhetas

num meio-dia de sol e alcatrão e já longa a noite

permanece o açoite.

 

Fraca e submissa, a leva de presos,

um corpo mole, que só se eriça em caretas

já nada quer saber:

a estrada é longa,

 

mais breve será morrer.

 

 

Outros tempos, outros lugares

João-Afonso Machado, 28.01.20

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Fazes o favor, ergue essa orelha bem hirta, que ela me lembra um querido podengo traído na pureza do seu sangue por uma quebrazita assim. De resto, havias de pôr a vista nos seus olhos vivaços e, já agora, descarregares o teu semblante. Ergue o raio da orelha, ergue a espinha e o espírito! Sei muito bem, os tempos mudaram e sobreveio a inquietação do que nos espera. Seja nada! Seja tudo o fim! Venhamos embora com apenas aquilo que sabemos fazer e... façamo-lo!

O silêncio do luto não se recomenda. O da indiferença, esse sim, é do mais salutar. E há o resto dos dias do planeta para, caladinhos, escutarmos os ecos da nossa obra, não fique ela no bolor da descontinuidade...

Meu acabrunhado amigo zurrador, as regras impomos-las nós a nós próprios. A algazarra - jamais. O que não fizeste para que o pasto não seja ralo? Pois... Mil vezes o cantinho livre do que o amplo mundo imensamente maior do que a nossa imprevidência em saber mantê-lo. Verás, crendo em mim, como o teu sono é de consciência tão mais tranquila.

 

"Casas Nobres..." em edição da Câmara Municipal

João-Afonso Machado, 26.01.20

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É uma nova fornada, desta feita das Edições Húmus, por iniciativa da Câmara Municipal de V. N. de Famalicão. O retrato, escrito e desenhado, das antigas - melhor ou pior conservadas - casas da nobreza ou da fidalguia neste concelho. Contabilizámos um total de 42 merecedoras de distinção.

A grande novidade está no formato do livro e nas cores em que agora o mesmo se ilustra - aguarelas do bom Amigo David Vieira de Castro, um artista famalicense. Por isso mesmo, acrescentaria, é a sua vez, a sua festa, o enfoque inteiro no seu trabalho. O qual, de resto, será exposto aquando do lançamento do livro, em peças emolduradas, à disposição dos interessados na sua aquisição. Há uma Casa, desde já, com um comprador assegurado - eu próprio.

A apresentação está aprazada para 29 de Fevereiro, pelas 17.30, na Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco. Mas, obviamente, também se enviam exemplares pelo correio.

 

No aniversário da Mãe

João-Afonso Machado, 24.01.20

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Mãe, foi o nosso almoço, os seus 91 anos. A Mãe a escolher, a Nazaré, terra de antepassados. Ventava muito, o frio cortava e as suas costas condoiam-se. Mas a Mãe, dentes cerrados no desabrigo do Sítio, como sempre nem um queixume. Lembro as suas memórias do seu Avô, homem férreo, tão longe do meu Rei.  E depois vinha o Avô - o meu, o seu Pai. Aí a Mãe dava o braço a torcer, minha querida Mãe. pois, a verdade vem sempre ao de cima...

Era coisa de conversa menor. A crença (que disparate: o querer) da Mãe andava umas nuvens, muitas, mais alto. O resto era pormenor emoldurado pelo seu ser Nazareth de nome, orgulhosa de tal, como o Tio Bispo, - Oh Mãe, está frio, melhor será almoçarmos abrigados... - Cale-se! Almoçamos aqui!

E assim foi, sardinha assada. A Mãe mandava!

Nada fazia prever o seguinte. Mas, antes do depois, conversámos longamente. Com o Santuário à vista, e nele as memórias das suas convicções, valha-nos o Tio Bispo e os entusiasmos da Mãe perante a Fé, os seus propósitos em voz alta e o mundo como a Mãe (esse nosso sangue C. Q. ...) o impunha.

Por isso, a abrir a manteiguinha pró pão, logo uma discussão acesa. A Mãe brava, eu a embravecer, contrariado na  minha racionalidade, (religioso, mas nem tanto...) - e esses foram os solavancos da nossa vida, porque filho de peixe sabe nadar...

Acontece, sobrevinha a bonança, - Oh Filho, olhe, quer...? - E um beijo muito terno, entretanto, mais a benção de todos os dias.

O que resta do nosso almoço na Nazaré, no seu aniversário? Inconfidências é que não! Vamos almoçá-lo pelo Tempo fora, minha querida Mãe! Sempre, para todo o sempre! Mesmo quando nos encontrarmo-nos lá em cima (aguente com calma, falta-me uma arrastada passagem pelo Purgatório) a retomar  as nossas conversas teológicas, a interpretação das encíclicas papais, como se a vida cá na Terra fosse o nada que para si é. E com a Mãe pela Fé, este rapaz pela Lógica e a Eternidade por ambos. Oh Mãe! que grande beijo para si!

 

"A exemplar Geração dos Setenta"

João-Afonso Machado, 23.01.20

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Assim decorre a semana no Café S. Paulo – pelo finar da tarde, na mesa do fundo, uns após os outros, os veteranos vão chegando. Agora, em pleno inverno, bem embrulhados, quase embuçados. A pedir um café, umas águas, a cervejita da praxe. E breve se iniciam os debates sobre os mais altos desígnios da Pátria.

São múltiplas as discordâncias, mais evidenciadas entre as amplas e galvanizadas hostes benfiquistas e sportinguistas. O azul e branco famalicense é veneradamente respeitado, tanto quanto a bandeira nacional, com as mesmas cores, pelos espíritos mais preocupados com o futuro português; enfim, por nós, os visionários, acrescentaria.

Já o reduto portista, manifestamente, vai perdendo força. Talvez – mercê da tal visão de futuro – porque seja perceptível que outros Duartes de Almeida (os de cá) carregam com heroicidade e os dentes bem cerrados o dito pendão real.

Mas nem tudo são assuntos sérios. A galhofa política é também muito praticada, na forma de quase toda a artilharia apontada aos órgãos de Estado, presentemente muito semelhantes aos de Stalin. Mesmo porque ali ninguém tira selfies, sequer nas frequentes incursões gastronómicas pelas redondezas – mesmo nesse denodado desbravar dos sabores mais sertanejos, mesmo então, é o indígena dono da casa de pasto que usualmente fotografa o emérito grupo de sábios à mesa.

Este é recorrente fazer-se acompanhar, quer nas suas lições, quer nas suas explorações, por um escriba, rapazito novo ainda de pulso firme e letra rápida.

Voltando à vertente lúdica desta gente quase subjugada ao peso fatal de um País sem juízo, acerca do Governo estamos conversados. E com frequência, em voz bem alta, vernácula e bem vicentina, ouve-se lá fora de quem são filhos os membros do Executivo.

O Sr. Luís, o dono do café, sempre atencioso, disponível e inteiramente respeitador de todos, mesmo das mais ousadas teses sobre o derrube do Poder. Um amigo, um grande democrata. Um deputado dos bons em potência – pouco dado a retóricas, muito mais aos afazeres do quotidiano.

Por isso a contundência com que o Parlamento é varrido a espanador neste supra-constitucional tribunal de famalicenses. Um autêntico berço da revolução nacional! Por razões óbvias, a principal das quais em dever ser no S. Paulo que se instalaria o poder legislativo. Por exemplo, no tocante à reforma do funcionalismo público; por exemplo no que respeito diz aos engulhos fiscais que apunhalam a generalidade dos portugueses sem, ao menos, em troca, um razoável prazo de espera para uma cirurgia.

O mais das abordagens versam muito as novidades trazidas pelas caminhetas. Pequenas locais – literalmente pequenas locais, ou então nativas ocorrências, alegres ou tristes a valerem um juízo, um comentário. (Há sempre, a propósito, um dito em língua morta, grego ou latim, que não alcanço, mas faz de conta…) Mesmo tratando-se de histórias antigas, dos idos em que Famalicão não conquistara um lugar no pódio da Liga maior, ou da Vila não sabiam tudo apenas os que o Senhor ia chamando à Sua presença.

É bom provar sabores de bolo-rei que já não se fabricam ou são ideias do que se podia fabricar. Aventuras antigas partilhadas entre gargalhadas… Enfim, aventuras vividas com alguns patifórios cujo nome da mãe, num brado trovejante, é ouvido lá fora na rua. Com a assembleia a gargalhar e uma ideia vivaça a combinar o amanhã.

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 23.JAN.2020)

 

Monumentos nacionais

João-Afonso Machado, 21.01.20

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Admiro os monumentos antigos, em ruína, sobretudo os mais asselvajados. Onde o vento uiva nas curvas dos telhados e das janelas destapadas e, a cada momento, outra parede se desmorona. É a tranquilizadora imagem de um passado sempre presente e enfeitado de grafitties, a agradável sensação do trânsito continuado das hordas bárbaras. O resto seria monotonia.

Ainda o outro dia eu admirava uma dessas relíquias, em torno da qual, em vez do fosso, da barbacã, há uma pista de tartan, - lá está, a vida correndo contra a morte. Abordou-me, então, um turista estrangeiro, curioso de conhecer se se levantava ali um menir gigantesco, um obelisco, qualquer símbolo grado da virilidade lusitana.

Nada percebo de Paleontologia ou de Geometria. Sabia-me apenas na Senhora da Hora, terrinha onde, no outro milénio, nascia muita gente da pesca de Matosinhos ou da lavoura maiata. Uma terrinha boa, fértil, pacata, que os ululantes povos do Progresso invadiram em vagas sucessivas e sufocantes.... De todo o modo, sempre consegui responder ao turista - Não, não, este monumento é já da Idade do Ferro.

 

Meteorologias

João-Afonso Machado, 18.01.20

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As águas correm nada pacíficas e carregadas de cinzento. Sem elas não há vida, mas toda a vida parte de um cinzento anódino, indiferente, e são os dias, um após o outro, que lhes dão cor. E emoção - sem a qual não se irá além de um verde sempre igual, fatalmente vegetal. Por muito que doa alcançar os tons sonhados.

É preciso saber esperar até ao azul que ri e é feliz. Essa a verdade sempre no meu livro de orações, rabiscado a lapiseira e disponível em qualquer bolso do meu casaco.

Portanto, tudo é o tempo e as suas agruras. Até uma primavera sem idade, nem o atropelo da correnteza a empurrar-nos para o fim, - em que os botes regressarão ao rio, os tufos de erva também, e as horas, mais tranquilas, se hão de esvair na noite numa serenata de grilos e rãs e olhares mudos mas carregados de entendimento.

Assim será, numa esplanada onde também cantam as velas acesas depois da tempestade. Se assim não for, as ditas velas, acesas se mantendo, velarão qualquer inditoso proscrito.

 

Agulhas e alicates

João-Afonso Machado, 15.01.20

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Olhou a malha da rede de arame com ares superiores de doutorada nos tricôs. E sentiu ali o cheiro alarve de mãos calejadas no manejo do alicate. Em uma vaga ironia, que ninguém se apercebeu sorrisse, lembrou os seus xailes, os cachecóis, e as luvas ou os gorros. As coisas mornas da vida dentro de casa. Toda a sua obra, a especialidade pela qual o mundo a conhecia.

Notou, porém, a diferença do borboto desta outra malha. Aliás, uma malha a deixar ver a roupa de dentro, fresca ou ardente consoante os dias. E muito afeita a silvados que não a rasgavam, a folhedo viscoso e ramagem enroscada, trabalho redobrado para a escova caseira.

Ia já com a sua manufactura em triunfo, ouviu o trinado secularmente treinado, volveu e topou o peito laranja, o olho esperto e sabedor de que não há quem... lhe faça mal. Justamente empoleirado na malha do arame - esse tosco arranjo bronco - entre o borboto acumulado entretanto.

Tudo soava a irrequietude à mistura com o tempo necessário ao efeito de uma aparição. Outros crentes, ali passando, se converteram também. A sua ciência veio por água abaixo. Restava o registo do milagre. E memórias do seu jardim, claro. Desde então os dias tornaram-se maiores e sem janelas fechadas.

 

Major Sal sempre tradicional

João-Afonso Machado, 12.01.20

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Já tinha ouvido, as árvores abatidas porque as parcas águas subterrâneas são para alimentar os prados e não gigantescas, tentaculares, raízes, verdadeiros polvos. E, na realidade, o verde ganhara viço, prometia farta comezaina aos herbívoros. A notícia dessa manhã, vinda a correr, chamando por um galope e uma arma, é que o prostrou. Ao longe ainda acreditou fosse uma vaca galega, descornada, estriada pela magreza, com alguma infecção caudal. Mas não, aproximando-se, dúvidas não restavam - era um tigre pasmacento, de olhar semicerrado e bovino, com intestinais trejeitos de ruminante. Senhor de todo aquele prado, libertado do arvoredo para felicidade dos seus comensais. Quiçá disfarçado de gato que se basta apenas com um rato, em vez de uma vaca inteira e o seu dono por sobremesa.

- Ali, sahib, ali!

Sim, o seu paradeiro era em Bengala.No mundo deles, de visita a velhos camaradas de armas agora ao serviço na Índia, muito precisado de umas férias da Sra. Josefaina.

- A tiger, indeed!

E olhou Pracash de relance, estranhando a falta do seu turbante, de uma adaga ou um khuttar. E muito pálido, a barba rapada e um chapéu de palha na cabeça, vagamente caipira. Major Sal desconfiou pudesse contar com os seus préstimos como kur nake. Ainda assim, mandou-o por um elefante, urgia iniciarem a caçada.

- Um elefante, sahib? Mas o tigre está mesmo aí, é só apontar e disparar!

Major Sal, efectivamente, não esquecera a Lee Enfield. Nem mesmo a sua munição, um bornal cheio dela. Mas impressionava-o aquela planura sem resguardo.

- Good Lord, Pracash! Estamos na India, respeitemos as tradições! E se lá no club soubessem eu matara um tigre fora da jungle?

Pracash desesperava.

- Sahib, elefantes agora só para turistas. Pracash ter medo, muito medo, e só uma navalha de capar porcos...

Foi quanto bastou a Major Sal para recordar a lendária bravura dos portugueses e os seus costumes. Tudo se resolveria...

- Look, Pracash, let's go to Trás-os-Montes e vemos se os teus pais nos albardam um macho. Regressamos com ele e, então sim, será uma caçada a sério. It's the better I can do for your people!

 

"Para os nossos cuidadores de doentes"

João-Afonso Machado, 09.01.20

A costumeira descontração dos portugueses, para não se trair, não deu por isso – o mundo muda aceleradamente. A todos os níveis e, designadamente, no plano das relações familiares. Cá em Portugal, ante a euforia profissional e o fracasso do desemprego, as gentes procuravam a sua independência, o apartamento mais funcional, a cidade, o desenrascanço. E para trás foram ficando, no antigo casario onde haviam criado os seus filhos, - os idosos; cada vez mais, em quantidade e longevidade, os idosos.

É de todos hoje sabido – vive-se mais tempo, o mundo laboral é mais absorvente, os solavancos da nossa economia não se compadecem com os regalos campestres de outrora. Os nossos dias são uma selva e não é justo sigamos as teorias de Darwin acerca da sobrevivência dos mais fortes.

Um trajecto imparável, este que refiro. Mas que só agora começa a ser patente. Como não acredito na bondade do Estado, acrescento a fatalidade da falha de meios para darmos albergue, bem-estar e alegria que dignifiquem os nossos idosos. Valham-nos muitas coisas, à cabeça das quais a Santa Casa da Misericórdia e os seus lares e instituições afins!

Entretanto, confrontamo-nos com o Presente e – sempre à portuguesa – ao improviso que ele nos impõe. Quase todos se deparam já com pais e avós incapacitados, desprovidos de autonomia, e a aflição que é zelar por eles entre as incontornáveis obrigações do trabalho e dos empregos. Quantos não abdicam desta fonte de rendimento para tratar do seu velhinho acamado, alimentá-lo à colherada, tratar da sua higiene! Ouvimos nas caminhetas, recorrentemente, histórias de quem passa o seu tempo à cabeceira de um doente entrevado; ou as aflições dos que têm a seu cargo pessoas já atacadas pela demência, em maior ou menor grau…

Foi neste contexto de emergência (face à ausência de respostas capazes dos poderes públicos) que, há meses atrás, nasceu a Associação da Casa da Memória Viva, iniciativa de um grupo de meia dúzia de famalicenses. Totalmente direcionada para a terceira idade, maxime, daqueles que já vão padecendo de doenças do foro neurológico, com todas as inerentes consequências.

A Casa da Memória Viva tem objectivos amplos, e um deles passaria pela criação de um «alfarrabista», um espaço de coisas antigas que os ajudasse a viverem um tempo que não é actual mas foi o deles: que os ajudasse a guardarem essa noção do tempo e do espaço, o lugar que por direito lhes assiste na vida mediante o emergir das suas recordações.

E, também, a desenvolver, reforçar e acautelar uma nova noção, um novo affaire surgente na nossa sociedade – o dos “cuidadores”. Pessoas que, remuneradamente ou não, abdicam de si para acompanhar – cuidar – de quem necessite.

Tarefa custosa, a requerer preparação específica. Formação. Tranquilidade e resistência psicológicas. Por todos os motivos de justiça, o seu retorno à vida de antes, uma vez dispensados os seus serviços. E os modos possíveis de descanso – trata-se de uma profissão de “rápido desgaste”…

Faltam meios. Falta gente. A Casa da Memória Viva carece de apoio, de financiamento e de uma sede em local adequado aos seus propósitos. O projecto é de Famalicão e para Famalicão. E esta crónica um apelo à diligência e ao contributo de todos os famalicenses.

 

(Da rúbrica Ouvi nas caminhetas, in Opinião Pública de 09.JAN.2020)

 

 

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