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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Circular"

João-Afonso Machado, 30.12.19

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Toda a viagem de palavras

rolou em horas magras de decisões

pela margem de uma curva infinita

 

entre a neblina das justificações

e a friagem maldita de um olhar de cegueira.

 

Ordenou então a paragem da berlina:

Olhou,

com nada deparou, tudo era brincadeira.

 

 

"O gin famalicense e outros paladares"

João-Afonso Machado, 27.12.19

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A quadra natalícia trouxe a Famalicão uma espécie de “praça da restauração” que assentou arraiais junto à Fundação Cupertino de Miranda. Cobre-a todo um manto de plástico porque, felizmente, ainda há invernos. E foi entre furgonetas e esplanadas e barraquinhas várias de bons comeres que redescobrimos a nossa Telma, emigrada do Café S. Paulo para este seu novo ofício.

Com muito de inédito, a sua banca: gin, aliás uma bebida que habitualmente não consumo. Mas este assinalava a excepção que trouxe logo o copinho experimental: o gin da Telma é de fabrico famalicense. É o Vermuiz Gin. Donde a enxurrada de perguntas que se seguiu.

Não será muito um tema de conversa nas caminhetas, mas o facto é que esta pinga nova adoptou o nome das velhas terras de Vermoim, do tempo em que havia lá um castelo a despertar a cobiça dos vikings. Veja-se quão antigas as águas em que navegamos! - as dos vikings, piratas desavergonhados que acossavam o litoral europeu e, pelo que se descobre, iam bastante mais longe, quase até Guimarães, na volúpia da riqueza dos autóctones. Mesmo sem saber se os meus antepassados suportaram quaisquer prejuízos com tais incursões, solidarizei-me com o conde Vermuiz Forjaz e, à sua saúde, emborquei o gin, desprovido de água tónica, uma bomba alcoólica mas com sabores exóticos, requintados, o resultado dos condimentos que são o seu segredo.

Ocorreu-me, até, a imagem dos velhos Ramires corsários, da Ilustre Casa queirosiana, à varanda dos palácios conquistados, em mangas de camisa, rindo e rilhando alvarmente talhadas de melancia. E comparei: os chefes vikings em Vermoim, no torreão do castelo, tragando goladas infindas de Vermuiz Gin pelos crânios dos vencidos (pobre conde!), a gargalhar com o saque, o incendiar do povoado pela sua tropa desabrida. O que não se sabe da História imagina-se, faz-se lenda, incute-se nas gentes. Porventura o britânico gin é oriundo de outras latitudes, a dos barbudos e impiedosos nórdicos…

Por isso, à laia de historiador made in Hermano Saraiva, instituo o gin um bebida das neves, desse frio assassino cuja única defesa é o álcool forte, que os bárbaros que foram os noruegueses trouxeram para Portugal, e agora a Telma propagandeia na vertente Vermuiz Gin.

Pobre Telma, graças a Deus longe dessas carnificinas… E voltando ao gin, insisto na sua qualidade. Quem lá for bebe-o nuns quase aquários, com gelo e umas especiarias pelo meio, excelentemente apresentado. Uma palavra também para o arrojado design das suas garrafas, como outro não vi. Quase frascos enormes de perfume francês, a querer esquecer os rudes pipos dos canibais vikings de outrora.

Provem, pois, o Vermuiz Gin. De tal forma repetidamente que nos proponhamos retaliar e invadir e alagar a Noruega em vinho verde. Isto conspirativamente já planeado da nossa parte, minha e dos meus confrades.

Ora, íamos nós nesses ousados planos de contra-invasão, quando nos apercebemos, ao lado da barraquinha da Telma demorava-se uma outra, a da D. Rosa Mendes. A especialidade – alheiras e mais enchidos e produtos de fumeiro. Num acesso de nacionalismo emocionado, chegou-nos à mesa uma tábua ajuntando uma quantidade vária desses milagrosos remédios para a alma (e para o corpo, por tabela). Lá estava a chouriça de sangue, o presunto, broa e queijo, a alheira e etc. Os amigos permaneceram no gin mas foi necessário peticionar dois copitos de tinto para mim, pequenos, nem eu mergulhara nos ditos aquários na expectativa de um certo néctar de Estremoz que antevira por ali, na tenda da D. Rosa Mendes.

Essa foi a festa. Saborosa. Bem conversada. Melhor explicada pela Telma. Do que resultou sabermos de onde vinha o liquido (vermuiz.com) e quem fabricava o sólido (ribeirorosa40§gmail.com).

Fim de tarde benquisto. Para se comer e beber com raça já não é preciso importar. A nação famalicense é auto-suficiente e sobra-lhe muito para carregar na balança comercial externa. Proclamemos, pois, a nossa azul e branca independência.

 

(Da rúbrica Ouvi nas caminhetas, in Opinião Pública de 27.DEZ.2019)

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 26.12.19

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Nesta altura, contaram-me, deu-se o naufrágio ante o espanto de todos. Mas depois perceberam-se as razões do desastre: as águas, quando muito paradas, não há velas que nos valham, é fatalmente a podridão do casco.

Mais a mais, o moliceiro ia cheio de gente no lugar do moliço; a multidão corroi sempre as entranhas da vida e a faina, a não ser feita por um só, não comporta mais do que uma ajuda a bordo dos nossos dias.

 

O Natal de Major Sal

João-Afonso Machado, 23.12.19

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A maid, gordalhufa e já muito sexagenária, desajeitada na fardamenta que lhe fora imposta, entrou na sala sem pedir licença e declarou - A sopa está na mesa, Sr. Major!

Era demais, à vista descoberta aumentava o seu descontentamento. Ele, um distinto oficial do Regimento de Warwickshire, tratado dessa forma! Major! - M-E-I-D-J-A-R - soletrou rectificando, - Meidjar Sal, if you please, Mrs. Felismaina.

As vindas a Portugal tinham destas coisas. Mil vezes amaldiçoadas, mil vezes repetidas. O impoluto Sal ainda mantinha por cá alguma parentela, como ele descendente de um aristocrata britânico que se desentendera com a Câmara dos Lordes e mesmo com Jorge III, fascinado com as aventuras do Marquês de La Fayette e pelo heróico fim de Camille Desmoulins. Mas, pelo sim, pelo não, o dito antepassado de Major Sal optara pela Corte portuguesa, onde foi bem recebido. E daí as visitas a este nosso rincão, sempre através do Canal da Mancha, no ferry, trazendo consigo o seu insubstituivel MGA com as cores do grandioso Regimento em que servia. Porque, enfim, no Continente - Good Heavens! - ainda ninguém aprendera a construir automóveis.

E embora o seu silêncio, o seu ar inocente de coincidência, a época escolhida calhava sempre no Natal. Fugindo a uma Grã-Bretanha impenetrável de tão cinzenta, húmida e a cheirar a carneiro cozido, enquanto cá... ele são as rabanadas, os mexidos, ele é o nosso bacalhauzinho e a penca, a cebola... Já para não falar no nosso bolo-rei, the cake's imperator, conforme publicamente o Major Sal reconhece após a terceira dose de brandy. Ora, justamente, tinham-lhe afiançado este ano, a detestável Sra. Felismaina era exímia a preparar tais pitéus.

Bloody Hell, ao que um legítimo Sal se tem de sujeitar!

 

Um naco de saudade

João-Afonso Machado, 21.12.19

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Onde andam as perdizes e as lebres? Os simplórios coelhos? Já não sei, não lembro, as minhas cardadas botas emboloram a um canto qualquer. E o Alentejo transformou-se num convidativo, encantador, lugar de turismo. Parece, não mais de caça.

Neste capítulo ressalta o drama: a esparsa sensação de cada um para o seu lado; de todos os subconjuntos de um feudalismo sem rei nem roque. O retorno à centralização da tribo será já, decerto, impossível.

Há idades de especial sensibilidade. São aquelas de um presente carregado de lacunas, onde o passado se enche de lagos a transbordar de memórias, e o futuro nos confronta com um pouco fiável par de pernas. Mais a mais, os óculos passaram a ser como a dentadura postiça, parte integrante de todas as horas do dia.

É isso, são os quadros que pintámos de suor, os tiros falhados, os palavrões vociferados. Manhãs em que tanto ri ouvindo berros à minha volta a chamar cães ávidos de correr, desobedientes como crianças de agora. Olhares pesarosos ante perdizes que voavam, em vez de terem morrido. Regressos estafados a sonhar almoços que pareciam inalcançáveis. Toneladas de sol ou de chuva. Ano após ano, umas décadas deles.

Pífia época esta, de nem um tiro só. O velho amigo canino entretido com as galinhas... Será a próxima a compensação que a ora defunta reclama?

(Tal o medo da idade da caça de salto já ter entrado em agonia.) 

 

Os dias

João-Afonso Machado, 18.12.19

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Quase sem dar por isso, suavemente, vim dar com os dias quedos, em pose de reformados. Os dias sentados numa grande mesa improvisada no parque, jogando a sueca todas as suas abençoadas tardes de preguiça. Ou então, entranhados do frio da época, os dias em amena cavaqueira, apenas adiantando uns minutos para dar passagem à carripana do Pai Natal. Os dias do futebol, das raspadinhas, os dias meninos como qualquer criança, apaixonados como qualquer parzinho jovem. Espantosos dias que um idiota, um selvagem, a um deles, dias, pontapeou como se o quisesse a correr o mês fora, em velocidade de automóvel, para chegar não se percebeu onde.

O dia atingido ganiu como um cão escorrraçado e refugiou-se nas iluminações, entretanto acesas, a decorarem a rua. À espera da ajuda do seu amigo, o dia seguinte.

Assim os dias encheram de música a vila inteira e proibiram o ruído. Tratam-se bem, em lanches e petiscos sem fim à vista, e os dias mais novos lá tentam patinar à custa de uns tantos trambolhões no pavilhão onde nunca anoitece.

E entre todos sobressaiem os dias esperançosos. Calados, discretos, pacientes. Mas, quem diria?, entre tantos dias confortavelmente instalados no presente, aqueles dias - uns dois dias - espreguiçam o seu torpor e o seu estar no futuro de um dia qualquer.

 

Breve parábola

João-Afonso Machado, 15.12.19

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Nesse dia de nuvens carregadas, os notáveis iam chegando com a solenidade de antigamente. Assim desmontavam e penduravam os escudos em paredes graníticas, fazendo e recebendo vénias e salamaleques parecidos. Tudo conforme usos indiscutidos, conquanto pouco perceptíveis. Em crescendo, a assembleia compunha-se e, bem vistas as coisas, ninguém não era parente de alguém.

Mais difícil será recordar o tema de tão invernosa reunião. A chuva enchumbava os gibões e a discussão, como sempre, foi acesa, aqueceu-os. Já por cautela, nem espadas, nem adagas, no grande salão. Onde a Província se reunia e falava de si.

Os presentes - muitos. Desafiando a paciência e a diplomacia do capitão-mor e demais autoridades régias. Em obediência à Tradição, contrapunham-se os barbados de branco aos outros, mais juvenis, mas representando os mesmos poderes, os mesmos domínios.

Entre a experiência e o voluntarismo, assim decorreram os debates. Com ganho para as barbas menos venerandas.

Este o pequeno portrait de muitos séculos. Num lugar remoto, já vazio, à conta de tantos os exilados de um mundo onde até o granito chora e se desfaz em lágrimas e cai no desalento, levando consigo as mais elementares regras da sageza e do bom senso... Acresce dizer, aumenta o número dos exilados... não apenas nas infrenes águas mediterrânicas.

Os escudos, esses, ... caem também. E os cavalos são igualmente outros - assim fumegantes na hora fria dos desperdícios, mas muito mais poluentes.

Comentando os dias correntes, Simão dizia a Fortunato - Deus nos valha! - E Fortunato a Simão - Não blasfemes, se nós nada fazemos para seja o que for!...

E ambos deram uma derradeira espreitada no Tempo que ruira sem mais se conseguir erguer.

 

"A homenagem ao «médico dos pobres»"

João-Afonso Machado, 12.12.19

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Se eu conhecesse pessoalmente o Senhor Dr. Miguel Machado, enviar-lhe-ia daqui um abraço muito menos cerimonioso do que o cumprimento devido a um desconhecido, conquanto um médico presente para todos os menos ausentes.

Não obstante, escrevo sobre a sua ilustre pessoa. Um vulto, já não sei há quantos anos atrás, topei-o de relance, ele com dois colegas de profissão, nos corredores do nosso hospital – descontraidamente, a bata desabotoada, o estetoscópio ao peito. Alguém o interpelou no seu percurso – creio seria uma criança, um jovenzito – e logo surgiram palavras simpáticas de encorajamento, um sorriso enorme, um momento quase de exuberância. Perguntei eu, na altura, - Quem é? – E quem me acompanhava respondeu – É o Dr. Miguel Machado!

E de recordações sobre este Senhor ficamos por aqui. Com os anos a correr, sempre obedientes ao Tempo.

Depois, soube da homenagem que a Associação da Casa da Memória Viva lhe destinava, acompanhei mesmo os seus preparativos, algo longinquamente. Decorreu essa cerimónia há quase um mês no Louro, para ser mais preciso, no restaurante Outeirinho. Informaram-me, com a casa cheia, absolutamente à cunha. Era gente de proveniência diversa, gente de representação institucional, a conferir-lhe a merecida solenidade, e cidadãos comuns, toda uma enorme manifestação de amizade e gratidão.

Tive, então, oportunidade de saber algo mais acerca do Dr. Miguel Machado.

Por exemplo, é natural da freguesia de Castelões, estudou em Braga e licenciou-se em Coimbra, tendo interrompido o seu percurso universitário para cumprir o serviço militar. De retorno ao trabalho, especializou-se em Pediatria.

E depois foi uma vida quase toda passada em Famalicão e redondezas. Onde ganhou o cognome de «médico dos pobres». Algo às vezes difícil de entender, depois de Júlio Diniz e do seu improvável João Semana. Por isso um título honroso e conforme a uma atitude de vida rara – a dos dedicados ao próximo. O Dr. Miguel Machado reformou-se em 2004 mas continua a oferecer particularmente os seus préstimos profissionais. Sendo dos famalicenses conhecida a sua biografia – e não sendo eu aqui um biógrafo – não será necessário adiantar mais dados sobre a vida do Dr. Miguel Machado. Valerá a pena, sim, meditar um pouco sobre o exemplo que transmite.

Porque está ali o contrário do estereótipo do clínico acelerado, em órbita enervada pelas urgências dos hospitais. Naqueles assustadores momentos do medo e da hesitação, do abandono em que se sentem os doentes. Despachados de rompante, é longa a sua fila nos dias mais turbulentos.

Um médico de cá. Da sua gente, a quem dedica a sua medicina. Mais um factor a levar em conta, recordando tempos idos em que se vivia mais devagar, mesmo sem tanta ciência e assaz menos meios. Onde essas falhas se colmatavam (como João Semana…) com o coração do “facultativo”, o seu espírito, todo o empenho da sua alma em prol de uma vida sofrendo e dependendo de si. Nada mais reconfortante para um doente do que sentir ao seu lado não apenas o técnico mas também a pessoa.

Tudo o indica, a longeva carreira do Dr. Miguel Machado é uma existência direcionada em tais parâmetros. Proficiência e humanismo. Daí o carinhoso, histórico atributo - «o médico dos pobres».

Uma palavra final para a Casa da Memória Viva, bem vistas as coisas uma associação acabada de vir ao mundo, mas já cheia de vida, e que nesta sua infância não havia de esquecer um pediatra famalicense, claro!

 

Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 12.DEZ.2019

 

 

Às voltas com as leis da Física

João-Afonso Machado, 11.12.19

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Guimarães, entre o tempo e a extemporaneidade. As leis da gravidade e as pernas para o ar. Guimarães, minhota, uma imagem da vida provando todas as cores possíveis do céu.

A evidência e a opacidade, tão subitamente acontecidas quanto o dia e a noite. Ou a excelência e a bestialidade.

Não há como fugir ao poderio dos humores. Logo de manhã, no tribunal de Guimarães,  as nuvens carregavam escuramente de justiça retaliadora. Depois tudo azulou, sobreveio um inesperado perdão. Os magistrados e os advogados, boquiabertos, gozaram o alívio de uma diligência judicial assim abreviada. Agradeci a Guimarães, terra de Santa Maria, a dádiva de um regresso mais cedo.

Porque tudo só em Guimarães. Cá fora, as horas e as atitudes têm o seu sinete. Lacram a vida. Ainda que chova de baixo para cima e os tons oscilem, um gesto é uma voz mandante.

Uma voz com eco repetindo-se na infinitude. Tenho para mim, sem jamais regredir. A não ser em Guimarães, terra de Santa Maria.

 

As águas já sobem?

João-Afonso Machado, 08.12.19

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De passagem, nem uma cancela, somente a pedra sobreposta a demarcar tal projecto de mato cerrado. Sobravam ainda as tangerineiras e os braços depenados do diospireiro, de onde suavam pingos melados de um alaranjado ácido, a contragosto da maioria.

Aves - nem um melro. A notícia fizera-se ouvir já: vem aí o grande turbilhão, milhões e milhões e milhões de metros cúbicos de água, e a invasão tragará leiras, hortas, uma aldeia inteira.

São coisas do Alto Tâmega. Negócios carregados de organigramas (suponho mesmo, com muito mais quadradinhos do que números reais), cujas vítimas ainda serram os últimos pinheiros, por mais umas moedas que eles possam valer. O dinheiro a sério, às sacadas dele, é como a água: foge entre os dedos dos menos poderosos, assim como os engole e afoga de seguida.

Por isso, nem o betão das barragens nem o volume das albufeiras. A Natureza  não gosta de se ver travada nem inundada, a não ser por si própria, ora faça sol, ora chova.

E sendo eterna, sobrevirá sempre, assim a destapem de obras vãs e dizeres incompletos.

 

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