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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Escala em Monte Abraão

João-Afonso Machado, 05.11.19

COSTA FAVOLOSA.JPG

Já nas vascas da sobrevivência, em derradeiro alento, despedi-me de todos - à francesa - e rumei o sul ignoto. No saquitel, muito pouco, como será de calcular a quem vive dos escritos. Apenas o bastante para assegurar o meu tugúrio no oceano de gente e betão que cerca a Capital.

No espírito, um vácuo absoluto. Deambulei, deambulei, perdi-me, três dias sem mudar de roupa, e assim fui parar a Monte Abraão.

Isso me garantiram os locais - Monte Abraão, onde arriara a mochila. Semelhava uma embarção, ideia tola, íamos todos num cruzeiro. Depois da via férrea e de uns barracões, de alguns carros sob suspeita de roubo ou abandono. A construção - assustando de tão alta e afogada de janelinhas, chaminés e milhares de pombos.

- Vamos a isto - disse cá comigo, eu um palaciano de toda a vida, enfrentando com indolência aquele desconforto que se adivinhava.

Instalei-me, essa noite negra, pejada de discussões ecoantes. Dormi mal, havia cheiros de origens desconhecidas. Lembrei histórias antigas do Ultramar. Por fim, manhã cedo, fui à janela: uma dama, enroscado o cabelo em pano amarelo, queimada do sol, vagamente cabo-verdiana, cumprimentou da janela ao lado - Olá, vizinho!  - Como está, minha senhora? - ao que ela foi respondeu - Assim-assim; eu sou a D. Porfíria - com duas molas de roupa entre os dentes.

Enalteci a cordialidade. Gostei das suas cuecas e mais roupa íntima, da t-chirt CR7 do Real Madrid, cri em fidelilades antigas. Ouvi vagidos de crianças. Ouvi a Cesária Borga também. Mas descomunalmente, pela noite fora. Escondi a máquina fotográfica no mais recôndito lugar daquele espaçozinho. As horas ondulavam estranhamente. Como se navegássemos. Uma súbita sirene: polícia ou iceberg? Oitenta filhos da minha vizinha de camarote jogavam a bola numa espécie de acanhado convés.

Monte Abraão é muito sensível aos ventos. Os ângulos das suas construções erguem mitos. Africanos. Multicolores. Ao fim de uma semana, sofri de uma enterite aguda minhota: dizer imperial do clínico - regresse!

Assim fiz. Com moedas até ao Rossio, esmoleiro a partir daí. Mas sempre preferindo a morte a janelas irmanadas ao quarto do lado. Ainda que estes arquitectos baratuchos desenhem proas em torres malditas, distantes dos horizontes sem fim. Um cruzeiro em Vale Abraão é uma carnificina: o navio abalroado pelo comboio, outra vítima dos fanáticos islamitas ou dos caraíbenhos, desses capazes de assustar o próprio Jack Sparrow.

 

Manhãs de eternamente

João-Afonso Machado, 01.11.19

EGAS E GATO À JANELA.jpg

Em uma dessas manhãs de sol e ruído na rua, a gente do trabalho cirandando, apregoando. No palácio, ainda o vagaroso sabor da preguiça - vagaroso, desinteressado e intenso. Nada como a preguiça, diz quem sabe. Sobretudo quando leva um safanão de qualquer charivari lá fora.

Despertaram nessa prontidão dos sentidos que tais acontecimentos proporcionam. Foi o tempo da curiosidade os trazer num foguete ao varandim. Porque estes desmandos de vizinhos têm sempre quanto baste de caricato.

O mais velho, o seu olhar muito azul, não escondia o vago receio de alguma faca a causar rasgos e sangue; o rapaz novo, maior de corpo, espreitava com severidade - tolerava mal desacatos de estranhos no silêncio das cercanias do palácio.

Mas assim mesmo ficaram observando, mudamente, depois de uma ordem breve - que alguém chamasse a polícia, aquilo não tinha jeito.

Afinal, tudo foi rapidíssimo. Posto cobro ao desaguizado, logo as mulheres das sardinhas, os carvoeiros e os aguadeiros retomaram a cantata do quotidiano. Era o tempo de um chá, umas torradas.

- Vamos para dentro, meu caro, corre uma certa brisa, nunca se sabe...

E cá fora ficaram apenas aquelas expressões e cores, o azul e o negro, o contraste entre o porte suevo defensivo e a resignada atitude do sul, - numa palavra, a saudade. Ou a eternidade.

 

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