Vendendo o meu peixe
São madrugadas de cortar à faca, tal a friagem. São o meu calvário, de Famalicão à Póvoa, num banco de pau, a carruagem quase às moscas, os carris ecoando-me nos ouvidos. Tudo para, ao alvorecer, um baú de lata nos ombros, não perder a lota. E depois a cruz sobre os ditos meus ombros - de lata e carregada de gelo... - o negócio a calcar-me os ossos, com todo o meu peixe, o peixe que vendo.
É a minha vida, o peixe fresquinho cá na terra, a bordo de um carrinho de mão espaçoso e com rodas de bicicleta. Lá dentro, em tabuleiros encastelados, a solha, o linguado, o pregado, em dias de fartança algum rodovalho. O meu peixe é como as folhas de um livro de sermões, desses que nos ensinam a ser pobres. De porta em porta, de rua em rua...
Assim vou sobrevivendo. De sonhos, também: da enorme epopeia que seria vender as minhas solhas, os meus linguados, em lugares mundo fora. Onde o comboio me levasse, na 3ª classe em que nasci, bancos de pau, varandim gingão, fuligem por mim todo, no rabicho da cobra fumegante. Entre milheirais e lameiros, um aperto de medo a cada ponte que passássemos, e a janela aberta para o peixe respirar, com os morcões dos outros passageiros a reclamarem do frio.
E, quem sabe?, eu a calá-los com umas solhitas menores vendidas a preço a que ninguém diz não...
Fosse a lata de outras dimensões, mais possantes os meus costados, eu alcançaria Lisboa, até. Corria a cidade desconhecida e, mais não fosse, trocariamos peixe: o meu pelas sardinhas de lá.