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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"O negócio dos 17 mil contos"

João-Afonso Machado, 28.11.19

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Foi uma conversa de antigamente essa manhã na caminheta. Daquelas como já não há, carregada de temas e termos ultrapassados, sobretudo no tocante a valores monetários em curso. Um falatório danado, quase a enlouquecer o Sr. Malafaia, de cigarro entre os dedos a girar o volante do veículo, um autêntico leme de veleiro, e dos grandes.

Na aldeia, a velha quinta brasonada, já ameaçando ruína, de longa data esperava um comprador dos seus musgos e silvados. O caseiro debandara com a família toda, cansado de um telhado seu telhas a liquefazer, na invernia, o que sobrava dos idosos ossos da Mulher; e farto, também, de uma terra ora sáfara, ora alagadiça em extremo, dando a comer poeira ao gado, ou então atolando-o em lama de onde só saía a reboque.

Em vista disto, o proprietário que vivia lá para Braga e raramente aparecia, decidiu vender a quinta. Mas sempre na mira de um bom negócio. Enfim, do melhor negócio possível, atentas as circunstâncias… A novidade, nas caminhetas, consistia, precisamente, no interessado que de Lisboa surgira.

Logo a gente próxima se foi chegando aos muros e ao portão da quinta, na mira de apreciar o ricaço da Capital, chegando em algum desses automóveis à CR7. Tão notável personagem, em breve seu vizinho.

Em boa verdade, nunca alguém o viu. Depois de uma visita-relâmpago às terras, e um olhar compadecido sobre tanta pedra em carne viva, o assunto passou a ser tratado entre advogados, devidamente acolitados por insuspeitos avaliadores. Não fora uma ou outra inconfidência, não se sabe de quem, as caminhetas viajariam num silêncio de unhas roídas.

Por isso, algo constara: que o lisboeta se dizia enamorado pela quinta; que a queria como se quer a mais bonita mulher; e que por ela estava disposto a pagar “17 mil contos de reis”, afirmava esganiçadamente a Tininha, seca como um caniço, a mais persistente nestas investigações de caminhetas.

O resto eram conjecturas; afirmações resultantes do calor da argumentação.

- Ele dá 17 mil contos mas o Sr. Beça não aceita – proclamava a Tininha – Quer para cima, muito para cima.

- Aceita, aceita, mulher! Para que está você com essas coisas? A terra hoje pouco vale, a casa a cair… Qualquer dia ele vai mostrá-la aos de fora de catana nas mãos, tanto é o mato e os silvados. Isso resolve-se depressa.

- Que quê?! Já lhe disse que o lisboeta meteu a viola no saco. Disse-me o compadre. Os 17 mil contos não chegam, está ali uma quinta que vale muito mais – E a Tininha rematou a sua prelecção com um dito de alto lá com o charuto – Por isso o negócio não se consumou.

A discussão seguiu em frente, sem fim à vista. Ou melhor: o Sr. Malafaia, desesperado, ansiava apenas chegar à Vila, era dia de feira, a ver-se livre de tais gralhas.

- Ele não vende, o negócio não se consumou!

- Consuma, consuma, mulher, o lisboeta fica-lhe com a quinta.

Contas feitas, perdeu a Tininha o despique. Fora mal informada pelo seu compadre. E nem lera um edital camarário há muito afixado nas grades da entrada – corria já um processo de licenciamento de obras no velho casarão. Afinal, o proprietário, depois de tentar a sua sorte, resignara-se à intransigência do lisboeta e dos seus 17 mil contos. A escritura fora já lavrada e lida no cartório notarial. O Sr. Beça, além do preço do “negócio consumado”, apenas levara consigo um velho alambique, porque o lisboeta lhe dissera não tencionar queimar vinho…

Diga-se, porém, em abono da verdade, os fluxos noticiosos das caminhetas em quase nada se distinguem dos costumeiros rigor e saber de quase toda a nossa imprensa.

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 28.NOV.2019)