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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

"Sobre o novo hotel"

João-Afonso Machado, 31.10.19

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É a sensação do momento – um novo hotel, para breve, em Famalicão. Parece que ali para os lados da Avenida do Brasil, em zona comercial próspera, sempre movimentada. Basta atentar nos parques de estacionamento repletos, os automóveis todos alinhadinhos, a lembrar – digo eu – os iates da marina de Vilamoura.

E a maqueta do novo hotel surgiu já nos jornais – um edifício no topo da modernidade, cercado de relva, quiçá de golfe também, piscinas, árvores de um futuro qualquer. Ouvi nas caminhetas, animais mansos e fabulosos – gamos, pavões, suricatas – povoarão e darão movimento e cor à envolvência do hotel. Em suma, a expectativa é grande e a proximidade do Éden parece ainda maior.

Mas (descendo com redobrados cuidados aqueles degraus altos e escorregadios da carreira), vim pensando, a caminho da Rua de Santo António, no nosso ancestral Garantia. Para ali desprezado, uma ruína, os estores como bocas a reclamarem dentista urgente, a pele putrefacta de um leproso. Isto tudo em pleno coração famalicense, como se as síncopes só vitimassem os outros e a alma nada mais fosse além de uma invenção.

Ocorreu-me, seriam umas semanas de incómodo na zona. Mas abria-se um buraco e o aparcamento subterrâneo dos carros ficava assegurado. Aquilo há de dispor de espaço nas traseiras, o bastante para uma piscina coberta, uma sauna e o banho turco, o ginasiozinho e as imprescindíveis massagens. É o spa, a nota fina e actual. Recuperava-se o antigo café ao melhor estilo pós-ante-revivalista e dava-se um jeito nos quartos – aí sim, o cenário tinha de ser substancialmente modificado.

Na velha cozinha – um novo museu culinário. O restaurante panorâmico, tornando o calor, sempre a acelerar. Muito respeito pelos azulejos nas paredes e o mobiliário de há quase cem anos… O resultado: mesmo no centro de Famalicão, a umas jardas da Fundação Cupertino de Miranda, à eterna esquina do nosso mundo inteiro, as tardes sentadas nas esplanadas do espaço pedonal defronte, – o ambiente belle époque de um venerando hotel famalicense. Igualzinho aos que, por aí fora, se apelidam agora hotéis de charme.

Não tenho ilusões: deixaria S. Tiago da Cruz, eu e as minhas canetas de tinta permanente, os meus cachimbos, uns casacos de tweed e a gabardine, e transportar-me-ia do universo britânico para esta sempre mui simpática cidade. Que convida a ler, a escrever, a ouvir o saber das suas gentes. Assim mesmo, sem alguma aspiração ao Nobel da Literatura.

Os meus serões seriam destituídos de Internet e telemóvel. Para qualquer imprevisto, o Garantia disponibilizava aos clientes assim contestatários – um fax; e cognac também. A próxima aventura do Capitão Blacke e do Prof. Mortimore cá decorreria, visto Olrik congeminar roubo audaciosíssimo no Arquivo Municipal.

Isto conversava eu com os meus botões, decerto a caminho de um pastel de nata dos mais belenenses, outro must da nossa praça. A olhar de esguelha o decrépito ex-edifício da CGD, - Muitas galinhas caberiam cá dentro! – disse para comigo, a pensar naquela feirante da caminheta que ouvi jurar a proprietária do fantástico hotel que se avizinha (o tal quase a chegar a Moço Morto) se chama D. Amélia.

Não pode ser verdade. Há de haver confusão. A D. Amélia, quando muito, será a esposa do chefe dessa pandilha.

 

(Da rúbrica Ouvi nas caminhetas, in Opinião Pública de 31.OUT.2019)

 

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 30.10.19

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Quem sabe não fumei já este (como outros) charuto? 

Não gosto de charutos: são uma obrigação que havemos de cumprir se queremos conhecer o mundo - sonhar. 

É verdade: quanta droga não consumimos para alcançar a realidade mais profunda. Alucinantemente, viciosamente, num esgar de amargura e dor, mas acendendo-os sempre (os charutos) e indo.

 

A vida pesa-me muito às costas

João-Afonso Machado, 26.10.19

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Em Lisboa. Vergado ao jugo de um saco omnipotente, carregado de enciclopédias. Não, felizmente, daqueles cinquenta e tantos volumes de encadernação rígida, que ilustram as estantes de todos os não leitores. Ainda assim, uma enciclopédia dolorosa, sobre um tema específico, chicoteada para as minhas costas vítimas do infortúnio e da falta de meios.

Podia ser pior: podiam os elevadores estar avariados.

De modo que lá me submeto, de prédio em prédio, o sacalhão a ferir-me os ombros, aos caprichos dos potenciais fregueses. - Bom dia! Tenho aqui algo que lhe interessa certamente. O meu nome é Machado. Estou a falar com o senhor?...

Desconfiado, o homem deita cá para fora um apelido qualquer. Prossigo: -Esta é a enciclopédia do mundo da arquitectura portuguesa. Uma novidade, saiu agora o primeiro volume, sobre o Minho... - O Minho? - sou interrompido - Eu nem sei onde fica isso!

Explico tudo, o Minho é onde nasceu Portugal, lá em cima, no Norte, colado à Galiza... - Então não me disse que se chamava Braga? Fatalmente provém de lá. De Braga. Os brácaros, um povo antigo, guerreiro...

Sou novamente interrompido.

- Oh homem, eu não tenho tempo para essas coisas! Olhe, volte outro dia, talvez a minha filha, ela estuda Ciências do Meio, parece que é assim, - casquinou, muito trocista, - Talvez a minha filha tenha gosto de enfiar os seus livros no meio das ciências dela...

Assim mesmo, a querer brilhar no trocadilho e a sujeitar a filha a todos os mal entendidos. Aterrei cá em baixo. Lisboa tremia à passagem dos autocarros, dos táxis. Buzinava infernalmente. Era uma avenida sem fim.

Mas enquanto a sorte não me bafejar, ao menos com um totobola dos gordos, a minha vida é isto: uma expressão dialogante suando a conter a vontade de mandar à merda a editora, o chefe de vendas, o público, este chinfrim inteiro. E, na paz dos bons, me refugiar numa tasquinha qualquer, a ver a bola na televisão, a gozar a chalaça alfacinha, a repetir a dose de pipis e o copito de tinto do Cartaxo.

 

Castro Marim

João-Afonso Machado, 23.10.19

Assim se vem provar que o Algarve não é exactamente uma boca aberta, escancarada para o mundo, a chamá-lo para se entulhar de turistas e desse jeito viver, já quase não falando português. Não, mesmo junto à costa, há vilas bem guardadas por inexpugnáveis  fortalezas, totalmente imunes à multidão.

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É o caso de Castro Marim. Meio afastada, é certo, daquele miolo fervilhante do Algarve de veraneio. Posta no Sotavento, já não longe da fronteira. Provinciana de um silêncio que até emociona. A ir à missa, lá no cimo de um escadório de respeito.

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E depois regressando recolhidamente a casa, como todos nós. A fugir do calor ou do frio, se é que no Algarve há lareiras e samarras. Ao menos, em Castro Marim, despudoradas torres habitacionais não encontrei, somente as costumeiras construções brancas e sempre lavadas, um lição que se aprende muito a sul.

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Porque o Sul, quando se deixa de asneiras estivais, é essa paz e esse convite. É outra vez a boa comida e a ausência de atropelos. De uma amabilidade que parece trazer-nos de volta lá. Enquanto não - acena adeuses com buganvílias em flor:

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Mesmo a essa hora do fogo de Agosto com ninguém na rua e, nas esplanadas de um ou outro café, a conversa em baixa voz, as garrafas chegando cheias e partindo vazias de cerveja, em mais um dia, igual aos outros,  - de vidas longas que se defendem do sol sem apertos nem empurrões. 

 

Crónica da tomada do Pessegueiro

João-Afonso Machado, 20.10.19

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Nessa tarde partimos, gente de lugares tão díspares. Exploradores, simples aventureiros, poetas, talvez assassinos. (O exotismo e a timidez da jovem coreana, lindíssima...) Todas as gretas da pele no sol curtida do Mestre Matias se abriram num sorriso de boas-vindas. As águas acordaram travessas, iamos sentir os efeitos da ondulação.

No mar não há espaço para estranhos. A bordo da nau catrineta breve se estabeleceu o colóquio, todo ele bombordo e estibordo. Pese embora as chapadas das águas, a ilha aproximava-se a olhos vistos. Não acredito as redondezas não fervilhassem em tubarões.

A custo desembarcámos, recebidos por gaivotas de expressão severa e quilha poisada nas urzes. O silêncio da ilha era somente ilusório, uma sombra do mítico Pessegueiro, afinal a sua riqueza piscícola, histórias de romanos gulosos de peixe salgado, vestígios de fortificações filipinas, o maxilar tremendo de Moby Dick. E o rasto demolidor das tempestades marítimas. A arma do Mestre Matias, velhinha do tempo da pederneira, vomitava fogo pela sua boca fumegante, tantos os perigosos episódios vindos de todos os lados de antigamente.

Foi um duro combate, a primeira rainha Elizabeth, afinal princesa, lançou-nos o seu corsário Drake, holandeses e espanhóis andaram sempre na nossa peugada. Mas, sem baixas, todos conseguimos o regresso à nau catrineta do Mestre Matias, a saída incólume das páginas da História, armadilhadas, aqui e ali, de alguns laços da mais prodigiosa imaginação.

De novo no Presente, o mosquete do Mestre Matias desarmado na cabine, feitas as despedidas, eis o mundo talhado outra vez em gomos de laranja. Mais ninguém soube de alguém, conquanto seja certo a frágil coreana não tenha ido além da Capital do Império. Há momentos em que o repicar do coração é sumamente audível e legível.

 

"A Net de outrora"

João-Afonso Machado, 17.10.19

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Era quarta-feira e as caminhetas, na Rua Vasconcelos e Castro, partiam em todas as direcções. Já no final da manhã, carregadinhas de gente a disseminar pelas freguesias, e de novidades tão frescas como a sardinha comprada às dúzias no mercado.

Os melhores informes eram sempre os faustos piores. Os mais tristes, os mais sanguinolentos, os mais horripilantes ou escandalosos acontecimentos. Era muito pelas caminhetas que os dramas da nossa terra chegavam a todo o concelho e suas adjacências.

Bastava o sino da igreja paroquial, logo ao alvorecer, tocar a finados – aquela sonoridade triste, lenta, vibrante, incansável. Alguém essa madrugada entregara a alma ao Criador. Urgia saber quem, e decerto o sacristão, pendurado nas cordas do sino, seria o melhor informador. A partir daí, a desventurada ocorrência tinha viagem de borla nas caminhetas.

Fora Fulano, o filho de Sicrano. Saíra ontem já sobre o tarde da venda de uma Miquinhas qualquer. Já com a sua pinguita, o papo quentinho, o infeliz nem olhou ao atravessar a estrada… Diz que a pancada do carro o atirou cinquenta metros para a frente… Pobre moço, tão novo…

E um suspiro imenso percorria a caminheta. Homem que nela viajasse alçava o chapéu da testa e coçava os cabelos ralos, embaraçado com os poderes da morte. Guardava silêncio. Mas havia sempre duas ou mais vozes mulheris a deixar escapar um – Ai Jesus, meu Deus! - Colos possantes de lavradeiras rijas apertavam em si molhadas de grelos, sacadas de pencas e outras hortaliças. E vindas de seiras calçadas pelos seus joelhos, galinhas peladas, bisonhas, exprimiam-se também – cóooot…

Os sinos aldeãos muito mais contavam: ora porque fosse o S’Manel a quem lhe dera, a noite anterior, o “mal ruim”; ora porque à Zefa, há semanas internada no hospital, pobre cachopa, a doença a levara, fraca do coração, nunca pudera com esforços maiores…

As caminhetas jamais contavam dos baptizados, e raramente dos casamentos. Lambiam-se todas com poucas-vergonhas. E o futebol não era para ali chamado. A política… nem constituía interesse nem era permitida. Coisa de milagre, a dor dos familiares das desgraças, essa que as caminhetas utilizava como combustível – a não ser que, eles próprios, fossem vítimas das réplicas do desastre, objecto de fatalidades pessoais, - também não atingia assinalável cotação. Muito mais valeria a perda de uma mula, a vaca de parto difícil ou a matança do porco.

Acontece, porém, hoje já não ser assim. Mesmo porque às feiras fazem sombra gelada as chamadas “grandes superfícies”. E automóveis, quase toda a gente tem um. As caminhetas subiram de escalão, usam agora os galões de “autocarros” e as suas viagens percorrem Portugal de lés-a-lés. Há modos diversos, mais sofisticados de informação e da sua divulgação. Mas – sempre e sempre – diz-se, e ouvi nas caminhetas, quem morre, quem partiu para a Eternidade, todos os que nos faltam. Somente - em tom diferente, talvez com uma fé maior na Paz em que partem; e uma redobrada atenção no desgosto dos que ficam e choram de saudade. Quero dizer: o mundo, nós todos, acreditamos que a morte não é simplesmente o fim. A esperança, contra o que possa parecer, conquista-nos as forças do quotidiano. A ausência física é amparada, ajudada a suportar, o mais é o Tempo. O Tempo de cada um, as palavras ternas de todos.

 

(Da rúbrica Ouvi nas caminhetas, in Opinião Pública de 17.OUT.2019)

 

 

Apanhados (XXVII)

João-Afonso Machado, 15.10.19

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Se as manhãs de sábado ainda fossem, sempre, uma romagem ao mercado; se as ruas tivessem, todas, dois sentidos e espaço para o estacionamento; se vivessemos o tempo do "lá vai um"... Se cá nevasse... fazia-se cá sky...

E não se discutiam as alterações climatéricas, os males da poluição. Eu gozaria o meu Fiat 500, vulgo Topolino, que teria escolhido na versão van. Seriam comigo os sacos de batatas e de farelo, atados de couves várias e melâncias e melões, abóboras para a sopa e para os porcos.

O combustível era um gasto reduzido e um dia houve, já não sei porquê, a descer para a vila atingi uns alucinantes 85 km por hora. À Fangio...

Tudo isto teria acontecido aí pelo meado dos Anos 50 do século passado. Eu seria um homem novo, cheio de energia, apreciador de um cigarrito, daqueles bons, sem filtro. Por isso mesmo, se assim fosse, estas linhas acabavam agora mesmo de chegar do Além.

 

Por aí...

João-Afonso Machado, 13.10.19

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Essa ritmada palavra - "pendular" - move o vaivém que nós somos. Que somos todos os dias de vidas afinal postas nos carris e sempre assustadas de deles fugir. Não é rotina, antes identidade.

Por isso mesmo, descarrilar é o fim do ser, o mal, felizmente raro, infelizmente risco permanente. A diferença gráfica deste mapa não é aritmética - antes se chama vontade.

  

"Sobreviventes"

João-Afonso Machado, 12.10.19

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Antes do fim o adeus de um olhar,

ainda o outono não acastanhou,

ainda o sono mal acordou

 

e o pica-pau na árvore maior

vai matraqueando o seu ninho

 

ensinando de quanta mais dor

é o traço firme de um caminho.

 

(Um esquilo aventurou-se na nogueira.

Chegou e partiu,

o milhafre não o viu.

É essa a sua vida inteira:

 

o arisco rodopio no governo

de um lar sem risco

sendo já o frio do inverno.)

 

 

Odemira

João-Afonso Machado, 09.10.19

Em boa verdade, a minha Mãe, alentejana de cepa, pouco conhecia das suas origens. Nos meus passeios, chegando a casa, contava o que vira e a Mãe enchia o coração com a sua Provincia, esses recantos onde nunca fora. Sorria e confirmava o Alentejo a sua terra de eleição. Foi, vão lá poucas semanas, quando explorei Odemira, para Ela uma China qualquer.

Então falei-lhe daquele interior de paz, sem o alvoroço das gentes. Disse-lhe do rio Mira, para si um ilustre mas ignoto passante,

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limpo, a grasnar, tantos os patos, os cardumes de taínhas que subiam, a  Mãe nem dava conta que o litoral andava por perto. Mais expliquei, a seguir da ponte férrea era a vila, a sede do maior concelho português, e, em cada arruamento, o Senhor permanecia sereno.

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Depois fui buscar retratos da sua infância, as omnipresentes barras azuis ou da cor da laranja destas terras tão longe do Norte onde viveu e criou os seus filhos. - Oh Mãe! tudo tão limpinho! - Filho, o Alentejo é uma maravilha. - E desandou em memórias dos anos do seu Avô...

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Contei-lhe mais pedaços de Odemira. A Mãe gozava a descrição, na enumeração das suas imagens pacificadas com o não retorno a esse berço. Só não valia falarem-lhe na monotonia do cante.

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Expliquei-lhe, enfim, a vaga de orientais (nepaleses, paquistaneses) que invadiu tais paragens à cata de trabalho. E enchem os jardins públicos na hora do comer.

Mas à Mãe já nem apetecia saber. O Mundo deu as voltas que houve de dar e a Mãe vivia no tempo onde foi e onde quis ir mas não chegou lá. Era o seu Alentejo.

Minha Mãe, herdei-o do seu sangue, é onde tenho os meus olhos, uma lasca grande do coração. O mais, a Mãe vê agora com outros cores e um pormenor acutilante. Odemira, para mim, é uma visita interrompida, um "até breve", minha Mãe - comigo, nunca será uma alentejana solitária.

 

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