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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Dos primeiros tropeções

João-Afonso Machado, 30.09.19

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Nesse dia talvez chovesse. No húmido, musguento, granito há séculos calado, o Tempo parecia, então, escorregar mais traiçoeiro. Depois de toda a crueza da casa destelhada, a capelinha ao abandono, um depósito de entulho, um pombal. Isso mesmo, um resort columbino, cinzento de tanto bater de asas, consta que chamado Santa Madalena. A abrilhantá-lo, no frontespício, vestígios heráldicos da presença humana de outrora.

Assim fomos no Tempo, à caça de todas as múmias. A tirá-las da sua paralisia, ao menos se tornassem falantes, contadoras de histórias do Passado.

Lembro agora, grossos pingos de chuva surgiram como morcegos despertos do seu dormir. Era o momento de regressar trazendo embolsadas as imagens e a memória, qualquer ideia súbita sobre como começar a investigação.

 

"Casas Nobres Famalicenses (ou o que delas resta)" - outro livro

João-Afonso Machado, 28.09.19

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Foram alguns meses a percorrer as freguesias do concelho sempre com a mesma pergunta a cada transeunte - Então conhece por aqui alguma casa antiga, com brasão, capela, uma torre? Assim tipo castelo?

Conquanto não da sua localização, de muitas sabia eu da sua existência. De outras nem sequer. Fui descobrindo ruínas, antigos solares já longe das mãos das famílias que os fundaram. E os mais modernos palacetes, também armoriados, na cidade, esses que receberam e deram acolhimento aos nossos Reis, aquando das suas estadias em Famalicão.

Num total de 42 casas, há-as para todos os níveis de grandeza, conservação e história. Esta ficou razoavelmente estudada ao longo de noites e noites de pesquisa em livros e arquivos paroquiais, agora com a preciosa ajuda da Net. Pelos menos, apresenta-se o essencial, o ponto de partida para ulteriores aprofundamentos.

O Amigo David Vieira de Castro, co-Autor, encarregou-se de, com a sua arte, valorizar o trabalho ilustrando-o com desenhos ímpares e irrepetíveis; o Amigo Luís Miguel Leão colaborou em texto e buscas. O livro é deles também.

Iremos abrir um sistema de subscrições para uma edição numerada e personalizada. Os pormenores ficam para depois.

 

O Endovélico

João-Afonso Machado, 26.09.19

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Em A Voz dos Deuses, de João Aguiar, entre os montes e os matos, entre os céus escuros e as manhãs brumosas, estava Endovélico, a divindade lusitana. E não havia guerreiro que, em sangue, não o atendesse cumprindo sempre o seu sacrifício ritual.

Era o tempo do invasor romano e das grandes pedras que os autóctones lhe arremessavam de emboscada.

Mas ao fim de muitos séculos Endovélico sacudiu o musgo e as teias, esqueceu a sua Idade do Bronze e tornou-se sol e estio. Arrastou o trono até à nossa pontinha mais atlântica, logo antes do fim do mundo; aí se dispôs, as barbas longuíssimas e alvas, e o deus carregado de mistério e de coloridos milagrosos de tão brilhantes ou afogueados. Dizendo palavras ecoadas de paz e serenidade.

À distância protocolar que os todo-poderosos guardam dos seus aúlicos e veneradores, Endovélico dás-se a aparições e audiências diárias. O povo é muito e variado e para seu assento ficaram as escarpas vicentinas.

Ali se murmura, ali se reza e contempla. Ali se entrechocam tantas linguas e dialectos. É invocado sob muitos nomes, Endovélico.

Nunca, porém, foram assim os seus fieis, o seu poderio: a sua magestade reinando acima do tempo e da erosão, das muitas vidas que sucederão às actuais, sempre em genuflexão nas escarpas vicentinas.

 

"Equinócio"

João-Afonso Machado, 23.09.19

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Ouvir chover a tarde inteira

como um passado antigo, analfabeto ainda,

decerto descalço…

tarde infinda a conjugar

o verbo morrer num presente inimigo

de se resignar aos três plurais

do cadafalso -

 

os medos letais, as ânsias,

olhares sumidos,

 

tempos corridos

para nunca mais.

 

 

Ubere

João-Afonso Machado, 20.09.19

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Ela nem era preta nem verde, a minha 4L, e já fizera muita estrada sempre sem alijar a carga, a velhota! Como o tempo passa, vão lá uns quarenta anos, no stand da Renault na cidade... Ultimamente ia pior dos ossos todos, chiava das molas, engasgava, disse o mecânico a idade não compensava o arranjo, eu que a deixasse por perto de casa, andasse por ali.

Estive quase a vendê-la ao filho mais velho do compadre. Mas era como a gente se desfazer do canito sempre à nossa espera no terreiro. Depois deu-me a ideia e voltei com ela à oficina, queria-a pintada com as cores dos carros de praça. Ia ser taxista.

Porque é ofício desconhecido cá nestas bandas. Nem em dias de feira ou festa. O povo que trepe para cima das mulas, se não quiser ir a pé. Assim me apanhei a ganhar a vida e escusa o sargento da Guarda de me encher os ouvidos com a história do alvará, que eu não sei o que isso é e ninguém pode impedir-me de levar a ti'Adozinda de volta ao monte com os bacorinhos prá engorda.

(Ao outro dia uma moça estrangeira, loira, tão linda!, pediu-me se a levava à herdade onde agora é o turismo. - Claro! - Pus logo as malas lá atrás e veio a meu lado muito faladora: - Naice, naice, - dizia ela. Eu, a brincar, guinava nas curvas e a rapariga, desacautelada, vinha para cima de mim (ou eu para cima dela) e ria-se muito. Toda rolinha, colo de garça...  Ao fim pediu-me um cartão (um carde) meu; - Não tenho - disse-lhe, já meio embatucado; mas dei-lhe o número do telemóvel, ela escreveu-o numa caixa de remédio; - Sou o Quim, sempre que precisar... de mim do Quáim; - Iesse, tanquio -; e não há manhã em que não acorde de olho no telélé e o nariz no ar, em busca daquele cheirinho dela que me lavou o taxi do que ficara dos bacorinhos da ti'Adozinda. Nãã, minha Senhora do Amparo, ela ainda vai telefonar para mais um servicinho cá do Quim. Há de ir comigo comer umas caracoletas, a minha marmeleirona da estranja.

Ós'pois, agora percebo esses novos da cidade, os uberes.)

 

Porto Covo

João-Afonso Machado, 18.09.19

São essencialmente praias sob falésias de respeito estas paragens e, dizem os antigos, um excesso de casario que faz chorar de saudades pelos tempos de outrora. Mas quem vem habituado aos arranha-céus à beira-mar plantados nada tem a objectar. E segue a correr rumo ao azul. De sul para norte, dá-se logo conta do Portinho:

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Depois, cuidando de não escorregar nas ravinas, da Praia dos Buizinhos:

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Da do Banho:

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E da Praia do Espingardeiro:

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Finalmente, a Praia Grande que, não sendo enorme, é de longe a mais concorrida, com Sines bem à vista:

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Do lado oposto, isto é, na ponta sul, a famosa ilha do Pessegueiro e uma bela travessia na traquitana marítima pilotada pelo Mestre Matias com história, fantasia e variedade de aves a condizer, breve passeio a modos de uma surtida corsária:

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Em outra maré se galgará essa ondulação até às ruinas romanas e ao forte filipino. Vale a pena! Mais do que tardes e noites de padecimento no centro cívico de Porto Covo, o Largo do Marquês de Pombal (que, após o terramoto de 1755, mandou reconstruir o povoado ao jeito lisboeta da régua e esquadro),

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onde um café, uma bebida, são servidos mediante prévio requerimento escrito e um tempo de espera digno de qualquer Conservatória. Uma vez lá petisquei a preceito; das outras não: desisti, era o pequeno-almoço que me iam servir quando eu ainda queria o jantar da noite anterior... E  sistematicamente recolhia ao muito aceitável aparthotel, porque para supliciados do Marquês já bastaram os Távoras, pobres infelizes decapitados ou esmagados à porretada.

 

Famalicão 4 - Paços de Ferreira 2

João-Afonso Machado, 15.09.19

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Ir à bola, ir à festa. Assim era in illo tempore, e eu voltei lá a ver se continuava a ser.

Continua. Numa estereofonia amplificadíssima. Mais a mais sob um ar abafado, tenso a erguer vozes e raivas - antes mil vezes os remos das galés do que o ofício de árbitro...

O estádio não concebido, felizmente, para multidões. O mesmo é dizer, o nosso clube há de ter as medidas exactas da nossa terra, que é também a terra dele. Esse o imenso relvado do sonho sem linhas de fundo. O clube de onde nascemos viverá a vida nossa de remediados, com todos os altos e baixos e a esperança de sempre na sorte grande de um dia. Completamente à margem da fortuna instituída, dos charutos fumados e das intrigas rilhadas entre os grandes magnatas da bola.

E é maior, decerto, a alegria vivida nos golos alcançados. Como quando a raspadinha escolhida é de monta, mãe de um belo jantar ou até de um filho mais opulento. O Famalicão, em maré de sorte (e a sorte requer bastante faro), à quinta jornada da Primeira Liga vai isolado na dianteira da classificação. Aconteça o que acontecer, estes momentos de orgulho e galarim já ninguém nos tira.

O sonho prossegue. Não pesa nem ocupa espaço. Até à próxima semana permanecerá sempre no seu auge.

 

Viação marítima

João-Afonso Machado, 14.09.19

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Gosto da plasticidade do asfalto azul. Dos sulcos a que se permite, sob o peso das viaturas, da espuma branca com que as cobre de sal molhado.

É uma estrada sem fundo nem contagem possível de faixas de rodagem. Até ver, SCUT das genuínas. Tão plana quanto ondulada. Desprovida de limites de velocidade e utilizada, em regra, por cautelosos e calejados condutores. Nela, as curvas pertencem apenas ao imaginário dos lemes ou a súbitas exigências da rosa-dos-ventos.

As vias do asfalto azul são um convite, o banimento mental dos mistérios das profundidades marinhas. São o sol de Verão e os pés descalços a bordo. Sem o chiar dos pneus na angústia das travagens.

É claro, podem ser a desgraça de um bom punhado de famílias, de uma vez só. Desgraças usualmente chamadas naufrágios, famílias que vivem, ou sobrevivem, da pesca e vezes que se repetem pela pobreza das gentes. Em cuja culpa não reside, aliás, a causa da sua ocorrência. Nem também no azul, nesses dias uivados de asfalto cinzento pesado de ondas e correntes e picado pelos pingos afiados da chuva. Onde, exactamente, findaram as SCUT's e sobrou apenas a temeridade dos esfomeados numa estrada  em que a Natureza não é policiável.

 

"A Casa da Memória Viva"

João-Afonso Machado, 12.09.19

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Curiosamente, a ideia, logo à nascença, foi criada e logrou crescer sob a batuta de sete amigos que já o eram nos recuados tempos da vida estudantil.

E a ideia, tão-somente, consistia na criação de um universo onde as figuras centrais fossem os doentes do foro degenerativo mental. Mormente os que padecem do terrível (e muito frequente) Alzheimer.

Assim se constituiu, por escritura pública de 17 de Maio do corrente ano, a Casa da Memória Viva – Associação Cívica Famalicense. Uma instituição obviamente aberta a todas as colectividades e gentes da nossa terra a quem o drama dos afectados por tais males não seja indiferente.

Burocracias à parte, devo acrescentar – porque conheço o projecto desde o início – quanto me encantou o alcance dos sonhos acalentados e a quererem dar passos firmes, reais, ao longo de tantas reuniões dos fundadores. Digo assim visto não estar em causa, apenas, a angariação de fundos a reverter para o bem-estar dos doentes.

Esse é, realmente, um importantíssimo objectivo. Mas a Casa da Memória Viva pretende dar-lhes mais. Quanto possível pretende dar-lhes o retorno ao mundo, um lugar na sociedade, abrir-lhes todas as possíveis janelas à sua capacidade cognitiva.

Pretende, também, intervir na formação daqueles que, familiares ou não dos doentes, os acompanham e suprem as suas falhas, as suas limitações. Esses para quem, entretanto, foi criado o designativo de “cuidadores”.

Estamos perante um vasto campo de actividade. Ainda mais atraente se pensarmos em idosos de repente transportados aos dias de outrora através da reconstituição das indumentárias, das imagens, da música, de tudo quanto poderão guardar ainda na memória, geralmente os quadros mentais mais antigos.

Ou seja, a componente museológica é um outro propósito da Casa da Memória Viva, na sequência dessa tentativa de recriação de uma realidade capaz de despertar a atenção e os sentidos de pessoas cuja existência, infelizmente, vai adormecendo.

Todos estes planos só vingarão com a participação de um número elevado – o mais elevado possível – de famalicenses: em prol dos afectados por doenças que um dia podem bater à porta de qualquer um de nós; buscando e alcançando a consolidação de um projecto decerto pioneiro a nível nacional

Ouvi nas caminhetas, a fé no seu sucesso é total. A seu tempo surgirão os espaços necessários, os meios técnicos adequados, porque gente é quem já vai muito batendo à porta da Associação.

Uma primeira iniciativa pública de divulgação, está agendada para o próximo dia 21 de Setembro (Dia Mundial da Doença de Alzheimer), entre as 10 e as 12 horas, no Parque da Juventude, com uma pequena visita por trechos da cidade antiga. Apareçam todos!

(Nesse sentido, aqui fica o contacto para eventuais inscrições: www.casamemoriaviva.pt).

 

(Da rúbrica Ouvi nas Caminhetas, in Opinião Pública de 12.SET.2019)

 

 

Na vinda d'El-Rei D. João V ao Norte

João-Afonso Machado, 11.09.19

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Não há muito, Sua Magestade El-Rei D. João V deslocou-se ao Minho, creio eu com o firme propósito de escutar o parecer dos famalicenses. Daí os tenha chamado a Ponte de Lima, onde estanceava a Corte.

Ninguém recusará satisfazer uma ordem do Rei. Contrariados embora, tanto o calor, tão penosa a jornada, os de Famalicão fizeram-se ao caminho. Sua Magestade, recebendo-os com o maior agrado, não deixou de estranhar os inusitados costumes das gentes de Vila Nova.

Não usavam cabeleira postiça; deixavam as barbas crescer; aparentemente, vinham desarmados... El-Rei, sabia um pouco da História britânica, do espírito livre e orgulhoso das Highlands... E, por momentos, arreceou-se.

Mas logo a bonomia dos famalicenses se impôs, entre muitas ofertas ao Senhor de bolinhos de bacalhau e vinho caseiro. Mais se ergueu bem à vista a sua premonição: iam, nas modas, dois séculos adiantados, tantos quantos os que faltavam para a reconstrução do seu concelho. Sempre práticos, disfarçavam sob amplas, e leves, capas negras a falta de energia financeira para as pesadas e mui embutidas casacas de veludo. À cinta, em vez da espada, uma botelha de água fresca escondida no calção. E, porque ainda os bolsos não houvessem sido descobertos pelos alfaiates, o seu manto ocultava também o saquitel das moedas e uma espécie de pombo correio depenado com que trocavam mensagens. Porém, ainda todos mantinham os rendilhados, seja na gola, fosse nos punhos.

Não sei que sinistra personagem inquisitorial alvitrou andar ali blasfémia. Mas Sua Magestade sacudiu o abutre e sorriu-se: já assim procedera com Bartolomeu de Gusmão e a sua Passarola...

 

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