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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Porque há muito além da praia

João-Afonso Machado, 27.08.19

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Agosto, um dos meses mais estranhos do mundo. Onde estou?

Eu responderia, não fosse o Tempo não ter lugar. Nem vagar. Viajo, aparentemente, há quase um século atrás. Os óculos não são novidade; a bata branca, a gravata, no auge do Verão, talvez sejam. A vida são os seus personagens, ou quem os encarne. Levo pressa, mesmo carregado de ferrugem e de pneus vazios - no extraordinário instante em que fui motorista do Hospital de Santa Maria e tantos contavam com os meus serviços. Qualquer coisa como beber esse sangue e pensar como funcionário de tal função. Onde fomos todos parar, senhoras e cavalheiros  de há décadas, já então alquebrados e necessitando regulares visitas de saúde?

Não sei chamar a vida por outro nome. A vida é atenta aos anos que passam e a gente assobia. Mas a altura chega. Assim sempre, antes dos meus cabelos brancos, eu loirito então, e dado à malandragem. Algo mudou?, o Tempo desacelerou?

Falando por falar,  agora mesmo sobrevoam-me as muitas centenas de perdizes que o meu Pai caçou...

 

Na última escuna sob o meu comando

João-Afonso Machado, 24.08.19

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Embarcámos no Carina, em Viana da Foz do Lima, rumo ao sul desconhecido. Eu, de bicórnio, espadim à cinta e pistolete, de calça branca, justa, e casaca azul, como compete a um tenente da Armada Real. Madame muito vestida, muito afrontada. A tripulação, percebi logo, por demasiado eufórica. - Sr. Rocha?! - clamei pelo imediato; - Estamos devidamente aprovisionados? - Assim creio, Sir! - Broa de milho? Bacalhau assado? Nutridos de vinho verde? - O imediato tartamudeou - Ele é mais biscoito e água da barrica, Sir... Providencie, Sr. Rocha, providencie. Sem que percamos a maré, Sr. Rocha; velozmente, Sr. Rocha. -  Yes, Sir!...

Já no camarim, descobri-me, libertei o espadim e o pistolete (este, à cautela, sob o camisão) desapertei o colarinho e, desembaraçado da casaca, arregacei as mangas rendilhadas. Espreitei de través os mapas e enchi dois cálice de Porto. - Aqui vamos nós, my darling! Tchin, tchin!

O candelabro, já aceso, balouçava ao ritmo da ondulação.

Houve, com pachorra, de degladiar contra o medo da pirataria. Em pormenor expliquei todo o mapa de África até à Mauritânia, à Somália. Não navegaríamos em latitude além (ao invés), não iriamos para lá da lusa (mas selvagem) costa alentejana. - Exactamente até onde? - Bom, soubesse Gil Eanes onde ficava o Cabo Bojador...

Escrevo este diário de bordo já depois do Cabo Mondego, onde apanhámos ventos contrários e Madame chorou, chorou, enjoou e descompôs-se um pouco (o que celeremente ocultei à tripulação). As esgurgitações de Madame foram algo mais consistentes do que lágrimas de arrependimento ante o Senhor. Sobreveio depois o absoluto remanso. Por isso ordenei ao Sr. Rocha (- Sr. Rocha, dado as velas inúteis, quero ritmo vincado! -) um empolgante B. B. King e os remadores remando nesse exacto vigor.

Hoje, 24 de Agosto do ano da graça de 2019, velejamos com suavidade ao largo da Arrábida. Madame feliz. Dizem os mapas antigos não faltará muito. Deus permita! O biscoito é intragável, o bacalhau não cheira bem e o verde foi todo nos dois primeiros dias.

 

Apanhados (XXVI)

João-Afonso Machado, 22.08.19

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Esse bracarense, cujo nome nunca cheguei a saber, tinha um em que fazia autênticas loucuras na velha EN14. Também Francisco Romãozinho com ele ganhou um Rali TAP. Eram carros com tanto de excêntrico como de moderno, tecnologia da mais apurada. O Citroen DS21 não principiava a andar sem antes altear o rabo, pôr-se em modos de não estragar o chassis nas agruras do pavimento. Uma suspensão absolutamente revolucionária.

Embalava bem, atingia boas velocidades que ajudavam a esquecer o seu jeito pesadão de "boca-de-sapo", como ficou para a História. Lá dentro, um desconhecido conforto dos seus estofos, o volante de um braço só, as mudanças servidas por uma manete que parecia só pedir um piparote e aí estava um redução, um reforço para a aceleração...

Foi um carro célebre, a viatura oficial do Presidente Pompidou. À distância de meio século, afinal podemos dizer, agora, o novo milénio não estava assim tão longe.

 

"Estrada de Benfica"

João-Afonso Machado, 19.08.19

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Sinais de cores petrificadas no tempo

dos domingos mortos e já sepultos,

ais! de amores

em horas paradas sem alento

onde viviam os anos ora adultos.

 

Lembra-me a leitaria,

os sons da Estrada que eu ouvia,

conta o relojoeiro, loja pequena,

um mundo inteiro,

as ruínas, pedras esquecidas em minas encerradas,

apressadas idas.

 

E onde estão as almas de então?

Onde estão?,

grisalhas já na reforma depois no caixão,

sob mortalhas a cumprir a norma

de morrer e logo partir,

como o ocaso a correr.

 

Estrada de Benfica, um milhão

de autocarros após e em carne a memória,

afinal a história somos nós,

não apenas os avós.

 

Nada já nos mortifica,

Estrada de Benfica.

Nada nos fere ou lanceta

em ti onde sempre radica

o reino da praceta.

 

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 16.08.19

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A combinação vinha de longe, meticulosamente preparada. Muito alimentada por sucessivos e desesperantes ataques meus de ignorância, sempre a embrulhar-me nos nomes das terras da Margem Sul. O Mar da Palha era absolutamente excessivo para a minha capacidade de compreensão. Tudo isso a levara, as pulseiras tremelicando num nervoso febril, a essa ideia, quase uma imposição, - correriamos as principais paróquias, navegariamos sob as pontes, até porque no Seixal fora recuperado um varino (- Um varino? O que é isso? - pensei eu caladíssimo), por tuta e meia disponível para todos os fins turísticos.

Embarcámos num início de tarde bastante ventoso. Simpatizei logo com o varino, a sua vela imensa, fui-lhe apresentado aos baldões da proa à popa e, de seguida, mandado sentar porque iamos partir e o Tejo, soprado pelos ventos, não é o cordeirinho que todos pensam. Nos seus calções tão marítimos, com uma t-shirt que era um mapa de Vila Franca de Xira para cá, a minha amiga saberia, com certeza, do que falava. Pelo menos, mexia-se lá dentro sem se bandear, como quem está em casa.

E meia-hora volvida, ante a gigantesca Vasco da Gama, vai de abrir o farnel, papar toda uma sande de chourição e uma mistela gasosa qualquer.

O Tejo, lá no meio, realmente não brinca. Aquilo são mesmo ondas e balanço, um duelo constante com o vento. A gente sente as tripas revolverem-se e, manda a prudência, nos cheguemos ao ar fresco no nariz, na boca, no espírito.

Por isso fugi para a proa, ante a expressão severíssima da minha amiga, sentada entre os demais, a sande de chourição quase finada mas já sem forças para me perseguir.

Mais à distância reparei, as suas cores amareleciam, esverdeavam, o olhar perdia vivacidade a cada oscilação do varino. Então, num derradeiro salto, agarrou-se à amurada e deitou às águas, muito sonoramente, todo o seu lanche de maruja calejada.

Ficou para morrer de vergonha e eu tive pena, tornei à sua companhia,

- Deixe lá, acaba de fazer a felicidade do cardume de tainhas que andar nas redondezas mais próximas...

 

A fábula de Crapaud, o sapo

João-Afonso Machado, 13.08.19

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Tudo isto na adormecida França de La Fontaine, em pleno Verão. Aliás, um Verão escaldante, em que até aos animais custava falar, e a sua vida pouco se afastava das piscinas bordejadas de agriões e outros lugares assim. O sol, inclemente quanto a sombras, entretinha-se realçando a fisionomia dos bicharocos e, nesses oceanos encrustados de lama, sobressaía a verde agilidade e a beleza de Grenouille, a rã.

Muitos se tentavam chegar. Devagarinho, com palavras mansas, a maior parte rapazotes gulosos da sua maciez, tão alva no ventre quão colorida no dorso, do seu olhar enorme, meigo e assustadiço, umas pernas de modelo na passerelle

Grenouille, a rã, a todos desprezava, de todos fugia aos pulos, indo de todos troçar longe num gargarejo estranhíssimo.

Mais cá atrás, o homem velho, calçado nos calos dos seus pés, sentiu no calcanhar algo remexendo no solo húmido, repositório do folhedo em uma pouca de água perdida. Espreitou, curioso, e descobriu Crapaud, o sapo: também ele procurava, na sua mudez, qualquer conforto em lugar amolecido. 

Revolveu a forragem e trouxe-o à superfície na mão. Depois depositou-o no chão e mandou o perdigueiro o deixasse em paz: no campo, não faltariam codornizes a entretê-lo...

E não esqueceu a expressão rendida de Crapaud, o sapo, - Será que me vais obrigar a fumar um charuto, ou outra maldade qualquer? -  Assim conformadamente, sabendo-se a eterna vítima do infortúnio. Pleno de calma, afinal nada asqueroso, somente Crapaud, o sapo.

Mas partiu sem judiarias nem mossas. Entretanto, Grenouille, a rã, pulava num gáudio soberbo em que aterrou na panela de um gourmet alucinado pelas suas pernas. Simplesmente, foi comida.

Moral da história: a celulite tem as suas vantagens; a barriga, a falta de maquilhagem, também.

 

A carcaça

João-Afonso Machado, 12.08.19

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Telefonei à Polícia e informei - fora atraído por um cheiro nauseabundo, aquilo não podia ser só o efeito da maré toda em baixo. Do lado de lá apelaram a outros fundamentos para as minhas suspeitas: se recentemente fora alguém dado como desaparecido, se o terreno se apresentava revolvido...

O terreno era o lodo. Esverdeado, ponteado do branco das aves a bicar nele larvas e crustáceos. - Aves necrófagas? - ainda inquiriu o consciencioso cívico. - Não homem, isto é uma baía: gaivotas, pilritos, garças... - Ah!, pois...

E desaparecida, em absoluto sumida, foi uma paisagem inteira a sacudir no vento o velame de tantas embarcações. Altivas, elegantes, de um romantismo como já não se fabrica. Um quadro único e vivo, antes de comprovadamente morto. - Então você não se deu conta?! - Ah!, pois, efectivamente...

Enfim chegaram ao local os peritos. E com infinitos cuidados se atascaram no lodo, com luvas de borracha até aos cotovelos arregaçando as suas batas brancas. Assim à vista, sobre o cadáver, em adiantado estado de decomposição (conforme eu supusera), não foram possíveis grandes conclusões: fragata?, varino?, falua? Decerto, alvitraram, a derradeira carcaça de um naufrágio total, imenso, ainda agora trazendo o rio numa chaga acesa de dor. E volveram à margem, as batas brancas como as saias de uma velha que molha os pés na praia.

- Então, as ossadas, são para ficar? - Não, não, tornamos um dia destes para as levantar. Sem o Ministério Público, nada feito...

Compungi-me do pobre desgraçado sem, ao menos, um saco a tapar-lhe os restos mortais. E em voz baixa, baixíssima, mesmo por respeito ao extinto, entoei aquela estrofe fadista que um meu Tio tantas vezes afinava, enquanto afinava também a sua centenária espingarda - Quando eu era rapazote/Levei comigo no bote/Uma varina atrevida/Manobrei e gostei dela/E lá me atraquei a ela/Pro resto da minha vida...

 

Sesimbra

João-Afonso Machado, 10.08.19

A serra, e o mar a entrar dentro. Uma vida povoada e reconhecida por El-Rei D. Sancho I. A costa nos perigos maiores desse tempo. Idos temerários dos portugueses então desprovidos de geometria. No topo, o castelo.

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A gente achega-se à beira-mar. A gente achegou-se em exagero. O que foram escarpas são gaiolas e cada macaco goza a sua - o todo entristece e os sonhos vêm de fora, entre o ido e o já não é.

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Sesimbra tem historial na pesca. Durante muitos anos - quiçá hoje ainda - era seu o record europeu da pesca ao espadarte . No mesmo dia, o mesmo pescador logrou a captura de dois bicharocos... Umas largas centenas de quilos no palmarés de um homem só! Nunca tal o Atlântico vira! Em vão demandei sinais dessa façanha - como se, de repente, Sesimbra dormisse em cima dela própria. Mas sempre em festa.

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Foi, justamente, de posta de espadarte o jantar. O bicho ainda anda por lá. É terra de mar, gravuras pintadas no acizentado das águas.

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E da minha juventude guardo a imagem mais bonita de um mercado de peixe. Onde está ele hoje? Procurei-o, não o encontrei. A noite chegara, entretanto.

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Ia dizer: talvez tudo tivesse sido um sonho. Mas não: tanta animação tem tanto de real como de imortal. Somente, Sesimbra dormirá os seus calores estivais. Cansada de sons, pernas, cores. Disposta a outro dia, outra estação, outro vagar. Vendo do lado de cá - a outros preços...

 

Aparatos

João-Afonso Machado, 05.08.19

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Todas as máquinas vêm do princípio do Tempo humano e, todas elas, alumiam os dias à sua frente. São linhas rectas, a vida é demasiadamente tortuosa para que as máquinas consigam fugir a uma realidade plana e sem curvas. Vão lá séculos, as máquinas descobriram-se ruidosas.

Aí,  demandaram dois nossos sentidos. Ganharam empolgação perante nós - - parte de nós, seus autores, a maior parte espectadora, - e troam nas ruas, encandeiam a vista até por indescoberta de locais mais distantes.

Mas a urbe gosta. Quando se despe de filosofias e de profecias, e veste o seu fato de macaco, o mundo reduz-se à imagem, ao som. Ou ao imediatismo, ao pão e circo, enfim, ao sábado à noite.

 

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