...E uma lesma fugida da Pocariça
Na realidade, confesso-o agora, aquando da célebre fuga dos caracois nessa húmida madrugada pocaricense, veio um deles a meus pés, decorria o almoço. Percebi-o aterrorizado, possuido pelo pânico, tartamudeando dizeres disconexos sobre cozeduras e palitos cravados nas suas costas, enfim, um cenário verdadeiramente canibalesco.
Era um rodopio de gente ávida de caracois, todos de arpão e redes em riste para a sua captura. Compadeci-me do pobrezinho.
Assim lhe segredei se escondesse junto ao tacão do meu sapato, que eu dali só me levantaria quando amainasse a fúria persecutória dos caracois. Foram ainda uns largos minutos de ansiedade até poder erguer o pé e o espicaçar - Vai agora, corre, enfia-te debaixo daquela moita, não te denuncies agitando os ramos!
Nunca antes vira um caracol chorar de gratidão. Só na Pocariça! Jurou viria ter comigo, ser-me-ia fiel no resto da sua vida. Por mim, garantiu, - Abandonarei a família e a casa e seguir-te-ei onde o destino te levar! - revelando, além do mais, toda a cultura evangélica dos gastrópodes nesta prodigiosa terra.
Regressei ao Norte. E ontem fui encontrá-lo na banca da nossa cozinha. Radiante, os cornichos bem vivos, deixara efectivamente a sua casa, desembaraçara-se de atavios às costas para vir mais depressa. Demorara apenas seis semanas, concluiu triunfante.
Abraçámo-nos. É sempre um gosto abraçar um caracol, até porque a sua viscosidade sai somente com água, sem necessitar de sabonete. E o meu amigo caracol por cá ficou, refugiado pocaricense, desconfio que muito confortavelmente na terrina onde todos os dias se prepara a salada do almoço.