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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

...E uma lesma fugida da Pocariça

João-Afonso Machado, 29.07.19

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Na realidade, confesso-o agora, aquando da célebre fuga dos caracois nessa húmida madrugada pocaricense, veio um deles a meus pés, decorria o almoço. Percebi-o aterrorizado, possuido pelo pânico, tartamudeando dizeres disconexos sobre cozeduras e palitos cravados nas suas costas, enfim, um cenário verdadeiramente canibalesco.

Era um rodopio de gente ávida de caracois, todos de arpão e redes em riste para a sua captura. Compadeci-me do pobrezinho.

Assim lhe segredei se escondesse junto ao tacão do meu sapato, que eu dali só me levantaria quando amainasse a fúria persecutória dos caracois. Foram ainda uns largos minutos de ansiedade até poder erguer o pé e o espicaçar - Vai agora, corre, enfia-te debaixo daquela moita, não te denuncies agitando os ramos!

Nunca antes vira um caracol chorar de gratidão. Só na Pocariça! Jurou viria ter comigo, ser-me-ia fiel no resto da sua vida. Por mim, garantiu, - Abandonarei a família e a casa e seguir-te-ei onde o destino te levar! - revelando, além do mais, toda a cultura evangélica dos gastrópodes nesta prodigiosa terra.

Regressei ao Norte. E ontem fui encontrá-lo na banca da nossa cozinha. Radiante, os cornichos bem vivos, deixara efectivamente a sua casa, desembaraçara-se de atavios às costas para vir mais depressa. Demorara apenas seis semanas, concluiu triunfante.

Abraçámo-nos. É sempre um gosto abraçar um caracol, até porque a sua viscosidade sai somente com água, sem necessitar de sabonete. E o meu amigo caracol por cá ficou, refugiado pocaricense, desconfio que muito confortavelmente na terrina onde todos os dias se prepara a salada do almoço. 

 

Socorro!, apanhei um morcego

João-Afonso Machado, 28.07.19

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O gato - implacável na caça aos ratos - deu um sinal estranho, muito de volta do bicho, atarantado com o bater das asas na passadeira do corredor. Era quase meia-noite. Fui lá ver, o que seria?, o que o fazia temer? - nada mais senão um morcego ainda jovem.

Cagarola! O morcego esvoaçou quanto pode, saltitou corredor fora, o gato atrás, muito fedorento, e ele a entrar finalmente na casa-de-banho. Onde logo se refugiou nos interstícios da cobertura de madeira no chão.

Ora, sabe-se, os morcegos gostam de fazer ninho nas cabeleiras das senhoras. Era necessário agir. O levantamento do madeirame valeu-me 0,51 euros em moedas perdidas antes do banho. E ele lá estava, a esconder-se debaixo do lavatório.

Em boa verdade - que deve ficar absolutamente entre nós - foi com um copo de lavar os dentes que o apanhei. (Os nojos das pessoas repelem-me.) Depois, deitei-lhe a mão ao rabo, que as serras da sua boca já as conheço. Chiou como se o matassem, não mordeu porque não conseguiu. E dali saiu, aberta a janela da sala, para o mundo dele, escuro e ignoto como o das suas avós harpias e dos seus primos transilvanos. Feio, de esgar medonho, orelhudo e com mamilos. Já matei uns tantos, à raquetada ou com tiro de pressão-de-ar, quando pendurados no tecto da casa da lenha, de cabeça para baixo.

Enfim, este abraçou a noite, novamente. E eu, logo de manhã, corri ao posto e telegrafei ao pretor André Silva, expectante de saber, será desta vez a República me condecora?

 

A procissão

João-Afonso Machado, 26.07.19

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O terreiro povoado de barracas de comes e bebes, além do enigmático quiosque, fechado, calado, um morto que nunca foi vivo, ainda por cima em lugar de destaque, é impossivel não esbarrar na sua inutilidade. Entre um pão com chouriço e uma mini, vou tentando perceber o que sucede: estou na minha terra onde nunca assisti à procissão do Senhor dos Aflitos.

Já não são muitos os meus conhecidos. Os membros das bandas musicais deambulam por ali, em breve cerrarão fileiras de instrumentos em riste. Ao fundo, na capela, os andores aguardam quem lhes pegue, e os fieis entram e saem, deixam as suas esmolas. Hoje serão muito poucos os que trabalham na freguesia.

O silêncio das devoções mais compenetradas anda absolutamente arredio. No cimo das escadas do cemitério, o povo posiciona-se para ver melhor. Surgem dois militares da Guarda infelizmente Republicana a cavalo, envergando a farda de gala. Irão eles na dianteira das solenidades.

Assim a procissão parte da capela, e à capela regressará, depois de um percurso a incluir um troço de estrada nacional. Sob o pálio os dignitários da Igreja, os responsáveis autárquicos vão na sua peugada. À passagem do andor do Senhor dos Aflitos, sente-se, finalmente, um murmúrio de emoção.

A procissão entrou já em casa. Não demora, os guardas trancam os cavalos no camião e abalam para o quartel. O terreiro esvazia de gente, anoitece, é a hora da janta. Das bandas fica sobretudo a saudade de algumas carinhas larocas de executantes suas.

Luzes multicoloridas são acendidas, recheando a capela toda. A animação está de volta e culminará com estrondosa sessão de fogo de artifício.

Mas, claramente, a minha terra não leu A Procissão do António Lopes Ribeiro...

 

Para lá da primeira vista

João-Afonso Machado, 24.07.19

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Gosto de terras assim populosas, particularmente dominicais. De adro da igreja pensativo, às voltas com a procissão prestes a sair, ou então coloquial, cerimonioso, todo salamaleques com as senhoras de sombrinha em punho à chegada às missas estivais.

Estas localidades, de tão agitadas na História, ganham sempre, mais tarde ou mais cedo, a alforria dos apertos, da chinfrineira actual. Tornam-se livres, donas do seu destino, os sinos das suas torres eclesiais voltam a ecoar nas serranias circundantes. Olhando-as no horizonte, sentindo-as a muralha de um castelo inexpugnável, as gentes daqui são felizes e assim se manifestam todos os dias, em abraços de quem regressou muitos anos após.

E domingo após domingo sobem as escadinhas da sua Matriz. Persignam-se depois de pousar os dedos na pia de água benta, rezam aos santinhos da sua devoção. E celebram assíduos Te Deum Laudamos. Ultimamente dando graças por continuarem alheias às loucuras climatéricas que abafam nós outros, simples mortais. Não, em tais paragens, como bem se vê, os cavalheiros mantém a cartola e a sobrecasaca, a bengala, o par de luvas de fina camurça, e ostentam nomes tão compridos como as saias das suas esposas. Neste exacto modo, aliás, se expressam.

Poderão alguns ler nestas palavras um casamento codificado. Erro crasso! Nem o que aí fica se lê - ouve-se. São os passos, os galanteios vagueando no Tempo, vindos já de muito antigamente, numa mão um simples lápis, um bilhete rabiscado a correr, qualquer nota romântica dirigida à filha do morgado que hoje não veio à missa, saiu cedo a correr os seus domínios.

 

 

A década que nada pôde

João-Afonso Machado, 21.07.19

Seria por esta hora, vão lá dez anos. O momento sem fundo de uma despedida que jamais o será. Somente a imobilidade de um corpo e uma alma para sempre viva entre nós.

Nada mudou a não ser a idade, um relogiozito que cada um traz consigo a recordar datas de aniversários. Porque quanto ao restante, o Tempo não se atreve - onde é ele capaz de alterar os sentimentos e as nossas conversas bem vivas, o nosso abraço e o mimo de de todos os dias?

 

Avis

João-Afonso Machado, 21.07.19

É ainda o norte do Alentejo, longe vêm as demoradas campinas dourando ao sol. E para trás ficou muita água de rios e barragens. A elevação em que se pendura a histórica vila de Avis surge inopinadamente, quase no dobrar da curva, assim tal fosse possível nas planuras desta região.

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Prossegue o ambiente aquático, são muitas ribeiras, alimentando-se umas às outras. Não obstante o calor, Avis parece tomar uns bons banhos e recolher depois à discrição dos seus arruamentos. Como sempre, virgens de qualquer maldade arquitectónica.

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No topo, o castelo, um vasto terreiro diante dele. São lugares e tempos de história empolgante, ainda mais empolgante nas imediações da igreja e convento de S. Bento de Avis. Evidentemente trata-se de um andar metálico, a bainha da espada chocando nas protecções das suas pernas, esse som do Passado cujo eco perdura - é o Mestre, é o Rei da Boa Memória, o nosso D. João I.

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E não S. Ex.cia o Presidente da Câmara (as cores políticas ali predominantes são as das carnes em sangue...) ou o pobre Almirante Cândido dos Reis, cujo nome é o dessa monumental praça. Enfim, mandam os de lá, compete-lhes ajuizar sobre quem mais fez por todos...

O mosteiro, lamentavelmente, mantém as suas ruinas bem escondidas atrás do edifício da municipalidade, que também foi seu. Ruinas voltadas ao mundo de fora, alcançáveis por quem vem na estrada, talvez carregadas de lágrimas tristes que também  sustentarão as ribeiras em redor.

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Roçando nelas mais casario. Avis gagueja e explica-se pior neste capítulo, não admiraria essas pedras esquecidas ainda permaneçam como defesas contra inimigos imperialistas. Mas o Alentejo é imenso, e isso bem se nota através de uma das antigas portas desta vila:

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Até onde correrão esses arruamentos,  a vastidão das sementeiras e dos olivais que se lhes seguem? Avis afinal aberta de par em par, capaz de ir sempre, só parando na extremidade sul portuguesa.

 

 

Um artista casado

João-Afonso Machado, 19.07.19

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Aos automóveis somente era consentido descer - a rua gozava o seu escasso movimento, a cidade fugira do calor para a praia. E nas redondezas daquela varanda, ecoando nas altas paredes dos prédios vizinhos, imperava o trinado do bichinho.

A rua era dele e do silêncio ouvido entre os seus recitais.

Foi numa dessas pausas que a senhora surgiu à varanda com um pano verde de feltro na mão. Adivinhava-se preocupada, já as luzes da ribalta se acendiam e ele, o tenor, ainda recolhido no camarim. A madame inquiria, num tom carinhoso disfarçado de aborrecido, se estava tudo bem. E ralhava-lhe, muito mansa, - Canarinho, canarinho!

Depois deixou-o só. Tratar-se-ia apenas de um momento de concentração. O canto formidável não demoraria... E, na televisão, uma assistência de concursos culinários ou de telenovelas, dessas muito exóticas em que duas mulheres são ambas as mães de uma criança só. Coisas extraordinárias vividas lá fora, muito abaixo das melodias do seu canário. O mundo - como dizer? - o mundo é outro, o tempo de vida da velhinha - sabe-o bem... - esgota-se, também já não seria agora que iria contracenar com tais espectáculos. Ora, sendo ela e o seu canarinho, na prática, sensivelmente da mesma idade, e enquanto a mercearia no rés-o-chão fornecer alpista e leite e pão e manteiga, mais um arrozito, a massa de esparguete, umas maçãs para os dois... - ri-se a senhora com os olhos muito brilhantes: - é este o meu amado; o meu marido!

E ao som daquela voz deslumbrante, sob torrentes de palmas vindas da televisão, o canário e a senhora curvam-se e agradecem estas abençoadas tardes de sossego domingueiro.

 

Com um abraço ao PCP

João-Afonso Machado, 16.07.19

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Em Couço, Coruche, no passado domingo, o cartaz a anunciar a Tourada Real, posto ao alto numa esquina, era impossivel passar despercebido. E como ele muitos outros, uma verdadeira colecção de mapas taurinos: as corridas tinham data marcada em Alcochete, Évora, Almeirim, Benavente, Tomar, Santarém, Monsaraz, Montemor... Por todas aquelas longas estradas, onde houvesse uma parede perto, mais cartazes às catadupas, tal qual cá para cima se anunciam as romarias... e touradas também.

A arte taurina não deixará que a matem. Desta vez a Esquerda - dogmática, intransigente, professoral - não levará a sua avante. Até por uma razão muito simples: o PCP já se enfraqueceu o bastante, a nível autárquico, para poder embarcar em tais aventuras. O que seria do PCP se chegasse ao seu território de implantação local com a "novidade" de que agora é preciso acabar com as touradas, coitadinhos dos toiros?...

Não é o tempo de explanar argumentos. Eles foram já todos ditos e reditos e, é manifesto, à Esquerda urbana interessa sobretudo entrar de picareta em punho nos gostos e costumes da nossa sociedade, destruindo-os. O resto é estatística: é contar os destituídos que nunca tinham pensado em tal, mas de repente acham moderno defender os direitos das minorias - das manadas de minorias.

A caridade militante, a política policial, voltadas, fazem o favor, para os locais do crime. Do verdadeiro. E para os sem-abrigo que, esses sim, não nasceram para dormir ao relento nem para que a sociedade e o Estado os farpeiem todos os dias com a sua indiferença.

No mais, vivam as praças de touros repletas de povo, Ribatejo e Alentejo fora, em marés de Festa Brava.

 

Fardado no Alentejo

João-Afonso Machado, 15.07.19

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Abaixo dos 30º não está. E nem pensar em mangas da camisa arregaçadas, tudo permanecerá no devido lugar, o colarinho, a gravata, o fato. Assim aprendemos o que já não somos capazes de esquecer. Não obstante, corri a aldeia, festejaram-me as velhotas locais, escondidas numa sombra do Centro de Acolhimento. Faltam dez minutos para o relógio cronometrar o atraso dos noivos. Depois melhor se avaliará a resistência humana.

Estranhos caminhos os que levam a um casamento no Alentejo. Mesmo o celebrante é do Norte, muito de arenga alta no púlpito. Em Longomel, - terá sido pela doçura do topónimo? A igreja é pequena, os lugares vão-se enchendo. Num ápice, a lapiseira encolhe-se e estaca a observar.

O interior é todo simplicidade, o coro faz as suas afinações terminais. Um casamento não é para qualquer um, isso a vida vai-nos ensinando. Neste momento, em Longomel, os passos caminham firmes, desprovidos de hesitações. A noiva entra pelo braço do pai, trazendo consigo a maior expressão de felicidade. E a cerimónia é curta e bem disposta. O padre, inteligentemente, abreviou muito o sermão, não se alheou dos efeitos do calor nos espíritos.

E depois das pétalas de flores na saída, as apresentações. Conheço quase ninguém - João Afonso, muito prazer... - É primo do Zeca Afonso? - Respondo ao inquiridor apenas com um sorriso a meio pano. Mas a pergunta é repetida mais além. Bolas! Já não se pode ser Afonso em paz.

O bródio é logo ao lado, onde alguma aragem e o queijo, as chamuças, a morcela e muitas garrafas de rosé fresquinho abrandam as chamas que me vão dentro. A indumentária mantém a sua compostura. E gente acolhedora, proprietária de boa conversa, surge de todas as bandas. Está-se no momento em que se está - indiferente ao antes, sem pressa quanto ao depois. Perfeitamente alentejanado, deste modo os olhos fogem-me atrás dos vultos, dos costumes, dos dizeres. E eles sem outra referência senão a do «João Afonso», hirtos nas suas suspeitas, num pretérito condicionante, confiantemente condicionado, generosamente hipotético - eu seria, ou não, primo do «Zeca»?...

Chegaram a música e a dança. De tão alentejanado deixei-me ficar à espreita do disco-sound. Bem vistas as coisas, tem muito mais graça vê-las exibir a sua arte, o seu ritmo, a sua agilidade. E por longos momentos, no recinto, houve apenas juventude e prémios, imensos prémios, mentalmente atribuídos por um juri sagaz - eu próprio...

O livro de orações e a lapiseira de novo saíram, outra vez voltaram ao meu bolso. E a noite continuou, alentejanadamente, mesmo chegando a hora da despedida e o quarto numa pensão do mais requintado silêncio alentejano.

 

Apanhados (XXV)

João-Afonso Machado, 13.07.19

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Nasceu e cresceu na Grã-Bretanha já com os Anos 30 a caminharem para o fim. Esta criança, ainda tão vivaça, será o avô ou o bisavô dos fabulosos Minis, para a História uma espécie de Beatles dos motores. É um Austin Seven.

Veio para cá tal qual chegou ao mundo: com o volante à direita. Desconheço o seu curriculo, sei apenas reside nas redondezas de Famalicão. Está conservado no seu melhor e gosta de festas e desfiles rodoviários.

É um prazer descobri-los assim (com ele, os seus congéneres), cheios de força e sempre lindíssimos, marcos de uma época que não foi a nossa, mas apetece tivesse sido - por muito que faltasse, abundava a beleza dos carros. E, felizmente, abundava também a escassez deles.

 

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