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MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

MACHADO, JA

A minha escrita, a minha fotografia, o meu mundo

Olivenç(z)a

João-Afonso Machado, 09.06.19

Em 1801, na sequência da Guerra das Laranjas, a Espanha apoderou-se de Olivença, vila nossa desde o reinado d'El-Rei D. Dinis. O corpo português saía assim dilacerado, nas vésperas das invasões napoleónicas, e, só em 1817, no Congresso de Viena, os espanhois reconheceram a soberania lusa sobre essa parcela do território nacional: entregá-lo-iam na mais próxima oportunidade... Ainda hoje nós, portugueses, continuamos à espera. Ou, se calhar, não.

Nada se fez, objectivamente. Olivença não vinha de volta e, a partir de 1840, nesse nosso bocado, alma portuguesa que português continuava a falar, os espanhois impuseram a lingua castelhana sob castigo de quem não a usasse. Mais de um século corrido ainda era assim. Numa antiga praça em que tudo é da lavra de cá. Começando pelo castelo.

TORRE DE MENAGEM DO CASTELO DE OLIVENÇA.JPG

Olivença tornou-se Olivenza, enfeudada na Comunidad estremenha espanhola, distrito de Badajoz. Lado a lado, portugueses e "nuestros hermanos": terra bilingue, ainda que às escondidas. O que ela tinha para mostrar ao mundo, tudo vinha do génio pátrio. Vale falar da igreja de Santa Maria Madalena, construção dos anos do nosso D. Manuel I, um requinte na sua entrada.

ENTRADA DA IGREJA SANTA MARIA MADALENA.JPG

E ninguém apagou, nem apagará, as armas do nosso Reino, o obreiro desta Vila. Nem mesmo a sede do actual ayuntamento, edifício também manuelino:

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Portanto, Olivença continua nossa. Continua nós, esse um dogma da minha fé. Sobreviveu a um século e meio de restrições linguístas, houve que aguardar dias mais diplomáticos. Depois de o português, sempre falado, ser considerado um dialecto menor, próprio das gentes antigas, rurais, roçando a ignorância total.

Até que, em 2010, as placas toponímicas estabeleceram o paralelo entre as actuais designações e as nossas, as verdadeiras. Muito embora ainda hoje, alguns dos nomes originais das artérias de lá continuem no palavrear do povo olivense.

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Gentilezas dos de Castela... Reconheça-se, indo um pouco além dessa tradução. Como é o caso da actual Rua Duque do Cadaval:

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Não chega, porém. E visitar Olivença foi percorrer o Portugal esquecido. Feito estúpido - eu - de pessoa em pessoa perguntando sempre a sua nacionalidade. Aqui, a nossa língua ainda por todos é entendida. E houve quem mostrasse o seu cartão de cidadão português, sinal de um pé em cada banda. Por todas as estreitas vielas, nem um milímetro diferentes das alentejanas.

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Realce-se - mesmo quem andando, como andei, de um para o outro a perguntar a origem do seu berço, - a extrema amabilidade dos de lá. Os ganhadores também não podiam proceder de outro modo. Mas já aos olivens(z)es de agora será dificil recordar os seus avós portugueses de 1801... Olivença é espanhola... por usucapião. Eles usucapiaram-na a nós, foi o que foi.

 

 

 

Mourão

João-Afonso Machado, 05.06.19

Entalaram-na entre a fronteira e um braço do lago enorme do Alqueva. E ali ficou, espreitando Espanha, vendo o mundo dar voltas. Parece que o turismo não pega naquelas bandas. E perceber porquê?

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Já de muito longe as vistas são apelativas. A Mourão vai-se sem guião. Sem referências históricas, alheios a conquistas e moiramas, os neurónios cavalgando somente a bizarria dessa vila perdida no Tempo. No topo, o castelo, vidas feitas de silêncio por ele abaixo, um silêncio, pensando bem, a que o turismo mataria as cores, os caminhos que senti só meus.

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Ruazinhas em cujas placas não pus os olhos. Formas alentejanas do mais puro sangue, o jardim na praça principal, sobejamente florido, os anciãos sentados em bancos corridos, esse fim de uma tarde de calor infernal, bebendo finalmente uma pouca de aragem, e as andorinhas com eles, os velhos.

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Como assim se manteria, se ocorressem novas invasões e as tabernas passassem a vender produtos gourmet e souvenirs? Condenada vila que já perdeu o tribunal e luta agora para que não lhe levem os Correios!

O sol não demoraria a sumir. O cegonho da mais recente postura acordou, espreguiçou-se, chamou a mãe que pasmava hirta no ninho... em um dos muitos telhados sob os quais as vielas deambulam. Haverá gatos em Mourão? Tratar-se-à de uma raça ancestral treinada, indiferente às aves?

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Ali optámos por jantar - bochecha de porco, esplêndida, - dali saímos, noite cerrada. Ninguém cá fora já. Mourão vive o desânimo dos seus, vai ao outro lado da fronteira em busca de auxílio. Necessita trabalhar para comer. Mas, restaurantes à parte, como manter a sua identidade consentindo chegue a horda turistica? O que será Mourão devassada pelos autocarros, as excursões? E não, aquilo não é clima que os saxónicos tolerem, seria sempre a morte anunciada dos nababos nórdicos, pobrezinhos.  Em tais amplitudes térmicas, só portugueses de boa fibra.

Esses que se deviam unir e salvar Mourão. Nós, os de palavras amenas e olhares sobre a Natureza. Os de profissão contemplativa, os amantes da caça e da pesca furtivas, em terras e águas fecundas da República ao lado do nóvel reino acastelado de Mourão.

 

 

 

Um minhoto na Capital

João-Afonso Machado, 03.06.19

VASCO GAMA.JPG

Completei, então, o meu trabalho de anos onde, terminantemente, demonstrava no nosso Minho imperar a ascendência sueva. (- Até que enfim este gajo escreve algo de jeito - terá rezingado um edil cujo um dos bisavós maternos era negreiro e tornara do Brasil sozinho, apenas com o seu séquito de mulatinhas.)  E com tal sucesso científico e literário, ela telefonou um dia, pródiga em felicitações. Assim, de repente e sem saber como, estava eu de volta a Lisboa.

Jantámos, foi toda uma restrospectiva das nossas vidas, e o resto não me perguntem porque não sei responder. Mas logo essa noite ficámos juntos, numa explosão imensa de amor; e na manhã seguinte, ainda entre lençois, planeámos o cruzeiro. Partimos uma semana depois, rumo ao Mediterrâneo, ao Adriático, a não sei quantas fascinantes escalas.

Lindo vapor! - exclamei, na chegada ao Cais do Tabaco. - Lindo quê? - inquiriu ela de rompante, muito simples, umas calças de ganga e uma blusa apenas. Não valeria a pena justificar-me com o designativo que a minha Avó sempre utilizava para as grandes embarcações... - Lindo transatlântico... - ainda corrigi. - Lindo navio! - foi o seu ensinamento final.

Os estrangeiros eram a esmagadora maioria. Não se falava português a bordo, circunstância grave, uma vez que ainda navegávamos águas territoriais nossas, sequer tinhamos passado o Bugio. Fechei-me na minha concha, enquanto a minha loiríssima amada se desdobrava em perguntas e cirandava velocíssima - Sorry, sir! - You are wellcome! -  tudo isto entre aquela malta internacional. Já no camarote, assustaram-me os dois malões enormes, acalorou-me o smoking que vinha neles.

Depois perdi-me, gozando os horizontes das águas sem fim. Trazia comigo as mui rurais Cartas do Meu Moinho, de Alphonse Daudet, que calhavam muito bem com os bancos estendidos, nas imediações das piscinas. Num acesso de romantismo entrei numa ourivesaria (que fartura de lojas, dentro do vapor!) e ofereci à minha querida um fio de ouro com um berloque qualquer que ela tinha achado girissimo. Retribuiu-me comprando um vestido e um biquini tão bem decotados que as minhas horas eram uma felicidade permanente. Foi cuidar-se ao cabeleireiro e eu satisfiz um velho sonho: cortei o cabelo e aparei a barba numa barbearia a bordo. - Essa pera bem afiada e as pontas do bigode a retorcer! - ordenei, com toda a força do meu sangue suevo.

Por norma jantávamos informalmente, num dos muitos restaurantes do barco. Mas chegou o dia da gala. O dia do smoking... A minha princesa enchia aquele vestido comprido, da cinta para cima era quase um buraco só... É claro, ai de quem demorasse os olhos nele!!! Um vapor de luxo armado em socialista - jamais!

E de repente, um pensamento como um punhal: na valsa ainda me desenrasco; mas... e o tango, os ritmos latino-americanos? Que ridícula figura me estava destinada naquele baile diabólico?

É quando o vapor esbarrou num qualquer iceberg mediterrânico. Senti-me molhado do suor, senti o pânico, um berreiro imenso...

... E quem berrava mais era a D. Dolores, batendo desesperada à porta do meu quarto ao Campo das Cebolas. - Oh Sr. Machado! venha depressa! Está aqui em baixo um menina furiosa, com pulseiras que tilintam como campaínhas. Diz que não lhe perdoa o atraso e esqueça a ida no cacilheiro à Trafaria...

Ainda estremunhado, recordei - eu ontem, realmente, demorara-me um bocado mais pelo Cais do Sodré, a beber umas cervejas e a ouvir o saudoso e inesquecível Django Reinhardt, num bar já nem sei qual...

 

 

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